Melhor forma de entender a evolução do homem é abraçar sua esquisitice, diz pesquisador

SÃO CARLOS, SP (FOLHAPRESS) – Os colegas de profissão do paleoantropólogo Bernard Wood têm uma mania que costuma deixá-lo injuriado.

“Sabe, todo mundo quer achar o primeiro hominínio [o mais antigo membro do grupo que inclui os seres humanos e não abrange os chimpanzés]. Às vezes dá vontade de bater as cabeças deles umas nas outras e gritar: não é nada disso, vocês estão tentando enfiar fósseis à força numa classificação que só leva em conta as espécies modernas”, brinca o pesquisador britânico, que se formou em medicina em 1970 e chegou a atuar como cirurgião antes de se tornar um dos principais estudiosos da evolução humana no mundo.

Wood esteve no Brasil neste mês a convite do Instituto de Estudos Avançados e do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. Fez duas conferências em São Paulo e saiu a campo na região de Lagoa Santa (MG), em cujas cavernas foram encontrados os mais antigos esqueletos humanos do Brasil (com até 12 mil anos de idade). “Tudo o que ele publicou acabou se tornando clássico”, resume o bioantropólogo Walter Neves, professor sênior da universidade paulista e um dos responsáveis por organizar a vinda de Wood ao país.

O britânico, que hoje é docente da Universidade George Washington (EUA), tem trabalhado em três grandes frentes. A primeira é o estudo dos mais antigos hominínios, aqueles que podem ter vivido há cerca de 7 milhões de anos, no momento em que a nossa linhagem parece ter se separado da que daria origem aos chimpanzés e bonobos.

A segunda é o surgimento do gênero Homo (ao qual nós, Homo sapiens, pertencemos, e que tem pelos menos 2,5 milhões de anos de idade). Por fim, Wood também costuma analisar a evolução dos hominínios do gênero Paranthropus. Esses parentes extintos da humanidade poderiam ser descritos, grosso modo, como uma versão bípede e nanica dos gorilas, graças à sua dentição e crânio peculiares, adaptados ao consumo de matéria vegetal em larga escala.

“Eu perco o interesse assim que os hominínios começam a ficar parecidos com os seres humanos modernos”, explicou Wood durante sua palestra na sede da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo). Além desse pré-requisito, o trabalho do paleoantropólogo tem outra linha mestra: retratar o passado remoto dos hominínios com a devida complexidade, e não como um simples prólogo para o aparecimento da nossa espécie.

“Os fósseis que nós encontrarmos perto da divergência entre hominínios e ancestrais dos chimpanzés vão ser mesmo confusos, é algo natural [pela semelhança entre as linhagens naquela época]. Mas o problema vai além disso. Alguns dos meus colegas imaginam que todos os fósseis com 6 milhões ou 7 milhões de anos ou vão ter alguma ligação com os hominínios ou com os ancestrais dos chimpanzés. Mas não há absolutamente nenhuma razão para acreditar que não poderia haver ali uma linhagem extinta que não correspondia a nenhum dos dois”, explica ele.

Um possível exemplo é a espécie que, para alguns especialistas, seria o recordista de idade entre os hominínios: o primata conhecido como Sahelanthropus tchadensis. “Eu tenho sido um menino levado quando falo do Sahelanthropus”, ironiza Wood. “Mas o fato é que talvez a espécie seja muito mais interessante se não a encaixarmos na nossa linhagem.”

Por outro lado, o estudo dessa fase antiquíssima da evolução da linhagem humana tem sido atrapalhado pela instabilidade política e social nas regiões da África que abrigam as rochas da idade “certa” para encontrar esses fósseis. Entre as áreas estratégicas, segundo ele, estão o Chade, o Sudão do Sul e Camarões. Apenas a descoberta de mais fósseis será capaz de revelar qual era a verdadeira diversidade de grandes símios daquela época.

Seja como for, diz Wood, a melhor maneira de entender a trajetória evolutiva dos hominínios é abraçar sua esquisitice e tirar da cabeça a ideia de que ela é uma sequência simples e linear. “A nossa situação atual é, na verdade, muito estranha, porque é a primeira vez em vários milhões de anos em que existe uma só espécie de hominínio”, lembra ele. “A regra é que muitas espécies convivessem dentro e fora da África.”

O estudo do gênero Paranthropus é um excelente exemplo dessa lógica. “Ao que parece, eles se alimentavam de grama e caniços, que crescem na beira de corpos d’água. É algo que lembra parte da dieta de alguns babuínos hoje. Grama não é um negócio muito emocionante para nós, seres humanos, mas acontece que as folhas jovens podem ser bem nutritivas”, explica.

“Como eles muito provavelmente não são nossos ancestrais, a nossa tendência é tachá-los de fracassados ou becos sem saída evolutivos, mas o fato é que eles sobreviveram durante 2 milhões de anos, o que é um sucesso evolutivo considerável [o H. sapiens, por enquanto, só existe há 300 mil anos].”

Antigamente, acreditava-se que, na bacia de Turkana, região da África Oriental rica em fósseis de hominínios, os primeiros membros do gênero Homo se movimentavam com mais facilidade e se aproveitavam de uma grande variedade de recursos, por serem onívoros, enquanto o Paranthropus era uma espécie que dependia de ambientes menos favoráveis.

Mas um dos alunos de pós-graduação de Wood está trabalhando com uma hipótese totalmente diferente: o Paranthropus é que teria ocupado a bacia de Turkana primeiro, ficando com os habitats mais favoráveis, enquanto os primeiros representantes do nosso gênero teriam sido forçados a “comer pelas beiradas”, diz o pesquisador.

E, quanto aos mais antigos Homo, Wood também é cético diante de tentativas de explicar a origem do gênero com base num único fator, como o aumento do consumo de carne ou a fabricação de ferramentas de pedra. “Toda vez que alguém propõe uma solução simples para um problema biológico complexo, essa solução quase certamente está errada”, diz ele. “É muito mais provável que um conjunto de fatores esteja por trás do surgimento do gênero Homo.”

REINALDO JOSÉ LOPES / Folhapress

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