SÃO PAULO, SP E BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Já passava das 21h de uma noite gelada em São Paulo quando o advogado Eduardo Medeiros, 34, percebeu que havia algo errado com a entrega do pedido que havia feito.
A tela do iFood mostrava que a comida seria entregue, de bicicleta, por uma senhora que aparentava mais de 50 anos, mas quem bateu à sua porta foi um garoto, que ele descobriu ter 15 anos e que estava acompanhado de outro menino, de cerca de 12.
“Fiquei em choque com a cena. Era tarde da noite e eles estavam ali no frio, sem direito trabalhista algum, sem carteira assinada. Eles me disseram estar usando a conta da mãe”, conta ele.
“Não eram menores aprendizes trabalhando regularmente e sob fiscalização estavam naquela bicicleta, sem patrão, fiscalização nem nada. Pensei em denunciar no aplicativo, mas eles iam apenas cancelar a conta deles e me oferecer um brinde não queria brinde, eles têm tecnologia para evitar isso.”
A Folha de S.Paulo conversou com alguns entregadores, que pediram para não serem identificados por temor de represália. Segundo A., 36, há quem comece a trabalhar com aplicativos assim, mas, segundo ele, é uma forma arriscada porque, uma vez flagrada, a conta é bloqueada.
No mesmo local, em frente a um shopping na zona sul de São Paulo, D., 20, admite que começou a fazer entregas quando ainda era menor de idade, durante a pandemia. Ele afirma que “era isso ou ficar parado.” Na crise sanitária, chegava a ganhar R$ 280 por dia; agora, cerca de R$ 80.
Casos assim não são inéditos nessa atividade. Em 2020, uma reportagem da Thomson Reuters Foundation havia mostrado menores no Rio de Janeiro que trabalhavam para os principais aplicativos de entrega de comida do Brasil em meio à pandemia de Covid-19.
Um deles se cadastrou no iFood e no Rappi, após o fechamento da escola devido à Covid-19. Com documentos da mãe e dos irmãos, ganhava até R$ 50 por dia, mas sofreu um acidente leve de bicicleta.
Em 2021, a Agência Pública também conversou com menores atuando em aplicativos, em regiões ricas da zona oeste de São Paulo. A reportagem acompanhou, por cerca de dois meses, a rotina de jovens de 14 a 17 anos.
Em agosto de 2021, o MPT (Ministério Público do Trabalho) em São Paulo encaminhou uma notificação recomendatória para os representantes dos aplicativos.
Na notificação, o órgão recomenda que as empresas devem se abster de “contratar ou utilizar, diretamente, ou por meio de terceiros, o trabalho de criança ou adolescente com idade inferior a 18 anos, em qualquer atividade que implique a permanência em ruas, avenidas e outros logradouros públicos ou em locais que os exponham a situações de risco ou perigo”.
O MPT abriu investigações no Rio de Janeiro e em São Paulo, e para o próximo mês está marcada uma audiência sobre o tema com uma das empresas de entrega. A procuradora responsável não deu detalhes da investigação.
O trabalho infantil se caracteriza por atividades econômicas ou de sobrevivência, remuneradas ou não, com ou sem finalidade de lucro, realizadas por crianças ou adolescentes com menos de 16 anos, em qualquer ocupação, com exceção da condição de aprendiz.
Atividades realizadas por adolescentes que possam prejudicar o seu desenvolvimento físico, psicológico, social e moral, também são consideradas trabalho infantil.
No Facebook e no YouTube, é possível encontrar vídeos e postagens com histórias supostamente de superação de menores de idade fazendo entregas pelos aplicativos ou mesmo dicas de como burlar o controle das plataformas.
“Menor de 16 anos, caindo para dentro, trabalha na conta do cunhado dele. Eu tenho um enteado que tem 17 anos, tenho telefone, tenho a conta, tenho bag [mochila para entregas] e meu enteado não quer trabalhar”, narra um entregador em um vídeo no YouTube.
Em outro vídeo, um entregador, que se diz menor de idade, explica que usa uma conta em nome de alguém que é maior de idade. No caso, ele tinha um cadastro no iFood em nome de sua mãe. “Nem todos [os aplicativos] pedem foto todo dia.”
EMPRESAS DIZEM TOMAR MEDIDAS PARA EVITAR TRABALHO PRECOCE
Em nota, o iFood reforça que não admite prática alguma que envolva trabalho infantil e que coloque crianças e adolescentes em situação de risco social, psicológico ou físico. Segundo a plataforma, não é permitido fazer o cadastro de menores, sendo obrigatória a apresentação de documento de identidade ou habilitação.
“O uso da plataforma por menores de idade é fraude, envolvendo um terceiro. Permitir que menores usem cadastros feitos na plataforma do iFood em nome de outras pessoas é infração prevista nos termos e condições de uso estabelecidos previamente para os entregadores que atuam na plataforma, e leva ao descredenciamento imediato do responsável pela transferência.”
Segundo a empresa, todos os dados e os documentos são verificados com tecnologia OCR, que permite verificar se a pessoa da foto é a mesma do documento de identificação apresentado. Uma ferramenta de reconhecimento facial é ativada periodicamente para coibir o aluguel e empréstimo da conta.
“É fundamental o papel dos parceiros sejam entregadores, restaurantes e clientes na denúncia de episódios envolvendo menores de idade por meio dos canais oficiais da empresa. Selecionando o pedido em questão, o cliente poderá ir em Ajuda > Relatar má conduta > O entregador não é o mesmo da foto, para detalhar o ocorrido. Todas as denúncias que o iFood recebe são investigadas internamente. Sempre que pertinente, o iFood também encaminha as denúncias para apuração pelas autoridades competentes, bem como coopera sempre que requisitado.”
O Rappi, por sua vez, diz que não compactua com o trabalho infantil, sendo este um compromisso da empresa, e atua para identificar casos desta natureza, decorrentes do não cumprimento das regras contra o trabalho infantil na plataforma. A empresa criou um canal de ouvidoria no aplicativo e também estabeleceu comunicações periódicas aos seus usuários, em seus canais oficiais e no próprio aplicativo.
“O Rappi ressalta que todos os entregadores independentes que atuam em sua plataforma passam por processo formal e rigoroso de cadastramento, o que inclui fotos, documentos pessoais e outros dados comprobatórios, além verificação de segurança a partir de fonte de dados públicos, para que todas as partes o usuário, o próprio entregador e o Rappi façam parte de um ecossistema seguro.”
Segundo a empresa, para coibir condutas ilegais, foram criadas solicitações de prova de vida. “Ao se conectar na plataforma, o entregador independente precisa fazer um reconhecimento facial em tempo real como forma de prova de identidade. Desta forma, o sistema faz a validação da identidade do entregador, aumentando a transparência, segurança e confiabilidade no app.”
PROJETO NA CÂMARA QUER COMBATER TRABALHO INFANTIL NOS APPS
Um projeto de lei apresentado pela deputada federal Maria do Rosário (PT-RS) estabelece medidas de prevenção e combate ao trabalho infantil em empresas de aplicativos de entregas ou transporte.
O texto determina que as empresas devem exigir cadastro biométrico ou identificação facial e promover checagem periódica, a fim de evitar a exploração e fraudes cadastrais.
Os estabelecimentos conveniados, que se beneficiam dos serviços de empresas de aplicativos, devem atuar na prevenção e combate ao trabalho infantil, exigindo comprovação biométrica ou identificação fácil digital do trabalhador antes do fornecimento da mercadoria a ser entregue por ele.
O projeto, que está na Comissão de Saúde da Câmara, defende que a atuação de menores no trabalho por aplicativo se enquadra no item 73 da Lista TIP (Lista das Piores Formas de Trabalho Infantil).
O item considera o trabalho em ruas e outros logradouros públicos, para atividades como comércio ambulante, guardador de carros, guardas mirins, guias turísticos e transportes de pessoas ou animais. A lista considera que os possíveis riscos ocupacionais vão da exposição à violência a acidentes de trânsito e atropelamentos.
De 2007 a 2019, foram registrados 27.971 mil acidentes de trabalho com crianças e adolescentes no Brasil em diferentes atividades, segundo a cartilha “As Consequências do Trabalho Infantil”, lançada em 2020 pelo Ministério da Saúde. A maioria das vítimas tinha de 14 a 17 anos, era do sexo masculino (81,7%) e do Sudeste (62,4%).
No período, as principais ocorrências de acidentes de trabalho envolviam mãos (10.352), pés (2.454), cabeça (2.171) e olho (1.060). 39,8% dos casos que levaram a uma incapacidade temporária atingiram os que tinham de 14 a 17 anos; 38,7%, os que tinham de 5 a 13.
As ouvidorias dos Tribunais do Trabalho podem prestar informações e receber denúncias. A do TST (Tribunal Superior do Trabalho) atende pelo telefone 0800-644-3444 e pelo e-mail [email protected].
DOUGLAS GAVRAS E GABRIELA BILÓ / Folhapress