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‘Mercosul está em crise profunda há pelo menos 20 anos’, diz Rubens Ricupero

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Não tenho parceiros socialistas”, “a relação com o Mercosul é um estorvo” e “o bloco não vai para nenhum lado”. As ameaças do presidente eleito da Argentina, Javier Milei, de esfriar as relações com o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a quem já chamou de comunista, colocam em xeque o futuro do Mercosul.

O bloco, que também reúne como sócios ativos Uruguai e Paraguai, e que tem um acordo pendente com a União Europeia, pode passar por um momento delicado a partir da posse do ultraliberal argentino.

Para o ex-ministro da Fazenda Rubens Ricupero, o bloco já vinha demonstrando sinais de crise há pelo menos duas décadas e só ainda não desapareceu por “inércia”.

“Nos primeiros anos, ele teve uma força fantástica, mas nunca conseguiu diversificar a área de serviços e de tecnologia, essa crise é profunda e talvez não exista uma solução”, diz ele, em entrevista à Folha de S.Paulo.

Para o ex-diplomata, apesar das incertezas causadas pela vitória de Milei no país vizinho e sua provável relação difícil com o Brasil, o anarcocapitalista deve enfrentar dificuldades políticas caso tente executar seus planos de campanha, e sua aliança com o ex-presidente Mauricio Macri deve limitar a sua plataforma de governo.

PERGUNTA – Independentemente das críticas de Milei, o Mercosul precisa ser reformado?

RUBENS RICUPERO – O Mercosul está em uma crise profunda há pelo menos 20 anos e que se agravou especialmente após o colapso argentino de 2001 [a crise do ‘corralito’]. Todos os governos que se sucedem no Brasil e lá anunciam a intenção de revitalizar o bloco e fazer com que ele entre em novas áreas, mas o Mercosul só ainda não desapareceu por ter a força de permanência da inércia.

Eu era ministro da Fazenda, em 1994, quando se optou claramente por essa fórmula de união aduaneira, é algo muito antigo e que sobrevive por ter criado interesses que são poderosos.

Nos primeiros anos, ele teve uma força fantástica, mas nunca conseguiu diversificar a área de serviços e de tecnologia, essa crise é profunda e talvez não exista uma solução.

Tanto os conceitos do Mercosul quanto dos outros acordos de integração da América do Sul e da América Latina datam do começo dos anos 1960, época em que a expansão do tamanho do mercado local por meio da integração seria um instrumento para a industrialização.

Foi assim também no início do Mercado Comum Europeu. Hoje, na imensa maioria dos países latinos, a indústria perdeu o dinamismo.

P. – Deixamos a industrialização de lado?

RR – Fui encarregado do comércio na Embaixada do Brasil na Argentina nos anos 1960. Naquela época estávamos começando a integrar os produtos manufaturados e havia uma série de acordos setoriais, as empresas tinham fábricas no Brasil, na Argentina, no Chile, no México e acordavam entre si.

Quando cheguei a Buenos Aires, o Brasil vendida madeira de pinho, café, banana. Foi aí que começamos a comercializar máquinas.

Só que com o tempo, a América Latina perdeu esse horizonte da industrialização, mas os acordos ficaram presos nessa ideia, somos basicamente exportadores de commodities e é obvio que Brasil e Argentina não vão se integrar vendendo soja e milho um para o outro.

P. – O que podemos esperar para o Mercosul nos próximos anos, com presidentes tão diferentes como Lula e Milei comandando os principais sócios?

RR – Não vejo nem a possibilidade de uma revitalização nem a de um colapso.

Só neste ano, a Argentina já exportou para o Brasil mais de 120 mil veículos, geralmente SUVs, tudo regido pelo comércio administrado, com cotas. A venda de automóveis e autopeças tem um acordo específico renovado periodicamente e que fixa cotas, é o oposto do livre-comércio.

Se Milei for de fato alguém de pensamento neoliberal e tiver a intenção verdadeira de liberar as trocas, terá de abrir mão disso.

Só não dependemos mais de importação de carros da China por causa das tarifas, não por competitividade. O que sobrou da indústria argentina é nessas áreas, a Ford saiu do Brasil, mas está presente lá.

P. – Se ele decidir fazer uma política de livre-comércio, vai colocar em questão o acordo da indústria automobilística. A indústria argentina é ainda mais protecionista, a Argentina é a Fiesp [Federação das Indústrias do Estado de São Paulo] ao cubo. Ele terá condições para enfrentar isso? Se tiver a intenção, ele vai ter condições de fazer isso?

RR – Não podemos esquecer que ele tem uma posição minoritária no Congresso. Foi eleito em grande parte pela ânsia de mudança da população, que não aguentava mais a situação econômica e estava disposta a pagar qualquer preço, mas isso não foi capaz de fazer com que ele ganhasse no primeiro turno.

Milei ganhou com o apoio do [ex-presidente] Mauricio Macri e da [candidata do macrismo] Patricia Bullrich.

Ele tem dito que eliminaria todos os subsídios. Macri dizia o mesmo, mas não conseguiu fazê-lo quando foi presidente.

As contas dos argentinos, como a de gás, têm um subsídio enorme. Não estou nem entrando nas propostas de dolarização ou de acabar com o Banco Central, vejo dificuldades para ele mesmo nessas questões concretas, que mexem com os interesses da população.

P. – O acordo entre Mercosul e União Europeia corre risco de emperrar? Milei declarou várias vezes que era contra, mas o acordo só existe hoje por causa de Macri, ele esperava que isso seria um grande trunfo para a sua reeleição, o que não ocorreu. Será que Macri vai querer abrir mão?

RR – O futuro do acordo depende mais da sua complexidade, as dificuldades são gigantescas e ainda há muitos obstáculos na Europa e, inclusive, aquelas colocadas pelo governo Lula.

A perspectiva para a relação Brasil e Argentina é de administração do prejuízo, a relação irá de mal a pior, não há boas perspectivas em matéria de política, ainda que se consiga administrá-la diplomaticamente.

Até agora, Lula se comportou com mais comedimento do que no passado, como na eleição de Evo Morales [ex-presidente da Bolívia] quando ele chegou a subir no palanque. Mas ninguém deve se iludir, tanto de um lado quanto do outro, os sinais são negativos.

P. – Vimos no Brasil uma piora na relação com a China no último governo. Podemos esperar o mesmo com a Argentina?

RR – Bolsonaro multiplicou as declarações negativas e agressivas sobre a China, foi uma espécie de cópia de [do ex-presidente dos EUA Donald] Trump quando falava sobre a origem do vírus da Covid-19. Mas, a partir de um certo momento, o próprio Bolsonaro recuou, na época da implementação do 5G.

O dilema de Milei tanto sobre o Brasil quanto sobre a China é que o país dele depende desses parceiros, mesmo que o novo presidente não goste.

A Argentina recebeu créditos da China e teve momentos em que a sua possibilidade de continuar comercializando dependeu do socorro chinês.

P. – O sr. foi o ministro da Fazenda que lançou o real. A Argentina, com inflação em 12 meses acima de 140%, precisa de um ‘Plano Real’?

RR – Na época em que fui ministro, [o presidente Carlos] Menem e o [ministro da Economia Domingo] Cavallo comandavam a Argentina e parecia que tudo estava dando certo.

Cavallo tinha conseguido eliminar a inflação de uma hora para outra, com a conversibilidade, em que um peso valia um dólar. Era uma ideia um pouco parecida com a de Milei, e na época muitos analistas achavam que o Plano Real era gradual demais e que demoraria para produzir efeitos, enquanto o plano argentino produzia efeitos imediatos.

Cavallo me disse pessoalmente que o Brasil deveria seguir o caminho deles. Vamos completar 30 anos com a mesma moeda, que não é perfeita, mas lá na Argentina o plano acabou em lágrimas.

Os argentinos têm uma certa tendência ao radicalismo enquanto aqui tendemos ao gradualismo. As duas abordagens têm defeitos, mas eles têm o que chamam de ‘tremendismo’, querem fazer todas as coisas de uma hora para outra, isso em geral não dá certo.

O diagnóstico da equipe do real era que a inflação brasileira era heterodoxa e precisava desindexar a economia, algo que ainda não foi plenamente resolvido.

A economia da Argentina tem muito defeitos, mas tenho a impressão de que o nível de indexação lá é menor. Eles precisariam de uma equipe com uma ideia original, que adotasse as medidas de acordo com as necessidades locais.

Rubens Ricupero, 86

Foi ministro da Fazenda e do Meio Ambiente e da Amazônia Legal e embaixador nos Estados Unidos e na Itália. É bacharel em Ciências Jurídicas e Sociais e diplomata de carreira, já tendo atuado em diferentes países, como Argentina, Suíça e Equador

DOUGLAS GAVRAS / Folhapress

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