Mesa na Flip aponta elite que troca ‘pobre’ por ‘humilde’ sem deixar de excluir

PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Quando começou a circular entre os bacanas da intelectualidade, agora como um escritor publicado, “as pessoas pararam de atravessar a calçada”, contou José Falero.

Com Bruna Mitrano não tem essa de usar eufemismos como “carente, humilde, simples”. “Gosto de falar pobre”, disse. “Não sou simples. Sou filha de camelô e sou complexa.”

A primeira mesa desta quinta (10) na Flip, a festa literária de Paraty, no Rio de Janeiro, reuniu o gaúcho Falero e a carioca Mitrano para falar de uma cidade que exclui. Pode acontecer inclusive, até mesmo sobretudo, em lugares que lhes pareceriam mais sensíveis à segregação social. Como o circuito literário.

Seja em Copacabana, no Rio, ou na Santa Cecília, em São Paulo, o que mais se vê “pessoas pulando cobertores como se não tivesse um ser humano embaixo”, afirmou Mitrano.

Para Falero a ficha caiu quando passaram a chamá-lo “para os coquetelzinhos”, em espaços que pouco lembram a Lomba do Pinheiro, onde ele cresceu em Porto Alegre.

Quando via a paisagem mudar da periferia para zonas mais centrais e nobres, ao se deslocar de casa para o trabalho, “chegou ao ponto de parecer que aqueles prédios eram de papelão, um cenário de mentira”. Eram lugares que “só frequentava na condição de subalternizado”, servindo àqueles com quem depois confraternizaria, já na pele de autor.

Mas “se aparece pai, primo, alguém da nossa estirpe que eles não conheçam, eles atravessam a calçada”, disse o escritor.

Ele não deixou de reparar no perfil da plateia do auditório, que pagou R$ 130 para estar ali. A maioria é branca e vinda de uma elite que provavelmente olharia torto para ele não fosse seu status literário.

Falero lembrou de uma jornalista que certa vez lhe perguntou se ele já cometeu crimes e foi preso. “Não sabia se ficava com raiva ou admirava ela, porque todo mundo pensa isso, só que ela expressou.”

Segundo ele, se por um momento acreditou que o meio intelectual refletiria menos alguns preconceitos estrebuchados pela sociedade, estava enganado. “É o oposto”, disse. “Não há diversidade, [há] muito racismo, muito machismo, homofobia.”

Falero já foi comparado pelo crítico literário Alcir Pécora a Machado de Assis, a quem por sinal muito admira, ao fazer de seu “Os Supridores”, publicado pela Todavia, um “Marx para manos”. O romance de estreia narra a história de funcionários de um supermercado que se rebelam por um quadro social rígido, em que o trabalho duro não necessariamente te leva além. Também o autor de 37 anos, na juventude, teve como emprego suprir produtos nas prateleiras de um mercado.

Mitrano, de 39 anos, fala das margens urbanas em “Ninguém Quis Ver”, que sai pela Companhia das Letras. Criada na periferia carioca, a mestre em literatura pela Universidade Estadual do Rio de Janeiro abre o livro lembrando que “só esquece o mar quem mora perto do mar”. Ela, não. “Moro a setenta quilômetros do mar, moro a duas horas e meia do mar, moro a dois ônibus ou vinte e quatro estações de trem e onze estações de metrô do mar”, contam seus versos.

Ela disse escrever para gente como dona Isabel, que conheceu em Campo Grande, bairro há 55 km do centro do Rio. A senhora morava no Bosque das Caboclas, numa comunidade tocada por mulheres. Achou bonito demais o que liam e quis saber o que era. Chorou. Nunca havia escutado um poema na vida. Mitrano decidiu que queria fazer poemas “para dona Isabel chorar”.

Ela contou que o hábito da escrita lhe veio no trem, “porque passava muito tempo no transporte público” e “tinha tanta poesia perto de mim” que tratou de se apropriar dela. “Queria falar dos meus vizinhos, mas também para os meus vizinhos.”

Falero iniciou sua participação pedindo desculpa qualquer coisa. “Tô nervoso, e meu raciocínio não funciona bem às dez da madrugada”, brincou sobre o horário matinal da mesa.

Não pareceu. Tanto ele quanto Mitrano deram liga, em falas que se complementavam e geravam aplausos reincidentes no público.

O gaúcho gostou de ver João do Rio homenageado pela Flip e acha que sua obra dialoga muito com a do cronista do começo do século 20, “muito rueiro”.

Mitrano adensou a crítica social quando disse que é quem vem da periferia que conhece a cidade para valer. “Esse morador não é ouvido, não tem voz”, todavia. Já quem costuma ter vez no debate público mal se desloca pela cidade, “não vê a necessidade de sair, e não quer mesmo”.

Ela expôs uma frase que a aborrece, a de que “o povo é burro”. “E essa pessoa é o quê? Tá onde, flutuando no espaço?” Para a poeta, “fica claro um projeto muito bem estruturado de exclusão de uma parcela da população”.

Mitrano ouve com frequência que sua literatura é violenta “porque traz esse cenário onde moro”. Acha, contudo, “muito mais terrível você desumanizar uma pessoa, deixar uma pessoa em situação de rua, do que as violências que vejo na favela”.

Mediados pela poeta Stephanie Borges, os convidados contaram referências. As de Falero vão de mangá a Machado de Assis, passando por filmes de Quentin Tarantino.

Mitrano contou que adolesceu sem livros em casa, “só a Bíblia”. Cresceu evangélica e chegou a liderar um grupo de jovens cristãs. Ao mesmo tempo, ouvia punk rock, que a apresentou à “letra de protesto”. Uma “vida dupla” de crente e punk, definiu.

Sua escrita foi se formando a partir daí. “Achava que escritor era aquele cara morto, branco, cis, hétero”, alguém “falando de suas crises existenciais”, disse. “De repente, estou vivendo de poesia. Pobre, mas vivendo de poesia. Que loucura isso.”

Falero encerrou a mesa tocando o samba Cacique de Ramos num cavaquinho já posicionado para essa canja. Escolheu o repertório para tocar na ferida de um país “que invisibiliza coisa de preto”.

ANNA VIRGINIA BALLOUSSIER / Folhapress

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