PARATY, RJ (FOLHAPRESS) – Em uma das mesas mais procuradas da Flip, na tarde deste sábado, pessoas se sentaram ao longo de todas as escadas do auditório da Matriz na ânsia de ouvir a conversa do senegalês Mohamed Mbougar Sarr com o brasileiro Jeferson Tenório.
Mediados por Rita Palmeira, os autores se mostraram afinados em seus projetos literários, revelaram conhecer bem a obra um do outro e dividiram até provocações sobre futebol.
Sarr jogou na quinta uma pelada com Chico Buarque, fã de seu monumental romance “A Mais Recôndita Memória dos Homens”, e ressaltou que ganhou a partida. Tenório brincou que, se ele estivesse no outro time, o resultado seria outro, arrancando risadas da plateia.
Sarr abordou a ironia consciente de que seu livro, que ataca o histórico racista das instâncias que legitimam a literatura na França, acabou premiado por esse mesmo sistema com a maior distinção da francofonia, o Goncourt.
“A ironia atravessa o livro do começo ao fim, e eu e o personagem não estamos excluídos dessa ironia”, afirmou Sarr. “Isso é algo de que gosto muito na vida. Nada surpreende que o livro se reflita na realidade. Ele é um organismo vivo e se vingou, reagiu, e que bom que ele fez isso, porque senão eu não estaria aqui.
Há uma ambiguidade essencial na situação de escrever na língua em que você foi colonizado, disse ele. Há expectativas exóticas em cima do escritor, um inevitável “presente de grego da situação pós-colonial”.
“Você fica sempre entre o não quero e o quero ser reconhecido”, diz ele. “Isso permite ser lido por um maior número de pessoas, mas há comentários do tipo ‘só ganhou porque é africano’. Mas o reconhecimento pode tanto vir como não vir por você ser africano. A solução é confiar totalmente no que você está escrevendo.”
Tenório conversou com essa questão sob a luz do racismo à brasileira, ressaltado no seu livro mais conhecido, “O Avesso da Pele”, vencedor do Jabuti de melhor romance.
“Meu protagonista chora a morte do pai, mas é um luto coletivo, porque ele foi morto por ser uma pessoa negra. O pranto dessa morte é coletivo. Nos meus livros, quanto mais eu falo de mim, mais trago a voz coletiva de uma população que sofre com violências sistematicamente.”
Antes de Sarr, no início do dia, outra mesa também chamou atenção do público da Flip –o encontro da filósofa espanhola Brigitte Vasallo com a psicóloga Geni Nuñez, que discutiram, numa tenda cheia, as mazelas deixadas pela colonização das Américas.
A espanhola, de fala acelerada e energizada, emocionou o público ao dizer que “o que chamamos de amor mata 80 mil mulheres por ano”, lembrando a fala da filósofa italiana Silvia Federici, que virou até pano de prato –“o que eles chamam de amor, nós chamamos de trabalho não pago”.
Nuñez, de fala vagarosa, elogiou a traição do pacto colonial que a espanhola faz. Ela diz que foi selecionada no povo dela -Nuñez é guarani- para levar a evangelização, fracasso do qual se orgulha. “Antes de pedir perdão, veja se vocês concordam com o pecado”, disse.
Há uma inversão colonial que costuma classificar quem está em perigo como perigoso, disse Nuñez. Ela partiu das cartas jesuítas, que registraram as formas de amor indígenas, para entender o que foi considerado pecado ou não. O nomadismo, por exemplo, era repreendido.
Nuñez usou essa ideia para brincar com os versos de “Eu Sei que Vou te Amar”, de Tom Jobim, e disse que não, ninguém sabe se vai mesmo amar alguém por toda a vida. Mas o louvor à permanência e as promessas de segurança do futuro são praxe.
“O que eles querem é que a única estrutura de apoio seja aquele casal tão pequenininho”, diz Vasallo, que se diz a favor do casamento para todos, mas propõe ampliar as relações para que outras estruturas sejam reconhecidas na sociedade.
Nuñez misturou à sua fala histórias pessoais e alguns poemas, de seu livro “Felizes por Enquanto”, da editora Planeta. Ela leu um poema em homenagem à sua mãe, que, ao descobrir que a filha não é heterossexual, disse que não gostaria de ir a um céu em que a filha não estivesse. Em seguida, Vasallo, expulsa da própria família, afirmou que é possível reivindicar essa estrutura e criticá-la ao mesmo tempo.
Cada fala era recebida com aplausos, a ponto de Nuñez avisar, ao fim de uma colocação, que tinha acabado, para dar a deixa. Com clima celebratório, alguns poucos casais trocaram beijos durante e ao fim da mesa. Ao final, as autoras receberam palmas de pé do público.
WALTER PORTO / Folhapress