MILÃO, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – “Emilia, filha do engenheiro Aldo Levi de Milão, era uma criança curiosa, ambiciosa, alegre e inteligente”, escreveu Primo Levi (1919-1987) no livro de memórias “É Isto um Homem”, de 1947. “Durante a viagem, no vagão lotado, seus pais tinham conseguido dar-lhe um banho numa bacia de zinco, em água morna que o degenerado maquinista alemão consentira em tirar da locomotiva que nos arrastava para a morte.”
Emilia Amalia Levi foi deportada aos 5 anos para o campo de concentração de Auschwitz, na Polônia, no mesmo trem que o escritor, em fevereiro de 1944. Apesar do sobrenome, não eram parentes. Diferentemente dele, ela morreu logo após chegar, assim como o pai Aldo, 46, a mãe Elena, 43, e o irmão Italo, 12, todos judeus.
Mais de 80 anos depois, os quatro estão sendo homenageados em Milão. Seus nomes foram estampados na mais nova leva de “pedras de tropeço”, como são chamados os blocos com placas de latão, de 10 x 10 cm, espalhados pelas cidade. A cada ano, elas são instaladas na calçada em frente de casas e prédios onde viveram judeus e opositores políticos. Além do nome, mostram datas de nascimento, prisão, deportação e morte.
Segundo o Comitê para Pedras de Tropeço de Milão, a perseguição à família Levi começou assim que as primeiras leis raciais fascistas foram aplicadas, em 1938. Aldo, engenheiro, perdeu o emprego na prefeitura, e Italo foi expulso da escola. Em dezembro de 1943, a família decidiu fugir para a Suíça, mas foi presa no meio do caminho. Semanas mais tarde, os quatro foram deportados para o campo de concentração de Fossoli. Em 1944, foram levados para Auschwitz, onde foram mortos.
“Foi uma grande dor saber que eles tinham ido parar em Auschwitz”, diz Paola Vita Finzi, 92, que foi vizinha dos Levi. Autora do pedido de instalação das pedras em homenagem à família, ela acompanhou na última quinta-feira (23) a instalação das quatro peças em frente ao prédio onde moraram. “Nossas famílias eram muito amigas. Italo tinha a mesma idade que minha irmã, eles iam na mesma escola.”
Em Milão, a instalação é decidida pelo comitê, que recebe pedidos, realiza a pesquisa em torno da deportação e autoriza a instalação. Famílias e amigos pagam os custos de fabricação, em torno de EUR 150, enquanto a prefeitura faz o buraco na calçada e a colocação, que dura pouco mais de dez minutos.
O projeto das pedras de tropeço é um monumento difuso por várias cidades europeias, a partir da criação do alemão Gunter Deming, dos anos 1990. A proposta é que, apesar da discreta posição, a placa provoque nos passantes um tropeço simbólico na história das vítimas.
Há mais de 70 mil peças instaladas, sendo a maior concentração na Alemanha. Em Milão, incluindo as deste ano, são 224 pedras desde 2017, diante de cerca de 2.000 deportações ocorridas entre 1943 e 1945. Em toda a Itália, estima-se que foram deportados 7.000 judeus e outros milhares de opositores do regime nazifascista.
Presidente do comitê milanês das pedras de tropeço, Alessandra Minerbi diz à reportagem que a iniciativa é uma forma de se aproximar dos acontecimentos da Segunda Guerra Mundial por meio de histórias individuais. “Mas infelizmente não acredito muito em dizer que, se conhecemos o passado, ele não vai ser repetir. Me parece que essa fórmula não vale mais, é velha e retórica. Neste dias, é difícil dizer que a história tenha nos ensinado alguma coisa.”
Por ter tido papel relevante no movimento de resistência e libertação da ocupação alemã, o Dia da Memória, comemorado nesta segunda-feira (27), é bastante celebrado em Milão, com eventos culturais e educativos. Instituída na Itália em 2000 e, cinco anos depois, incluída no calendário da ONU, a data é uma referência ao dia em que os russos liberaram Auschwitz, em 1945.
Um dos principais marcos é o Memorial da Shoah, criado sob a principal estação ferroviária de Milão, de onde saíram trens com centenas de deportados. O museu ocupa a plataforma conhecida como 21, usada originalmente para despacho de carga postal. A partir de dezembro de 1943, esses mesmos trens passaram, de forma velada, por meio do trilho subterrâneo, a transportar pessoas para os campos de concentração e extermínio.
MICHELE OLIVEIRA / Folhapress