SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O governo de Javier Milei tem anunciado como sua uma obra que estava entre as principais vitrines da gestão anterior, do peronista Alberto Fernández: a reversão da estrutura para levar gás do campo de Vaca Muerta ao norte da Argentina, exportá-lo para a Bolívia e, talvez futuramente, ao Brasil.
Com o projeto, há expectativa de uma economia anual de US$ 1 bilhão (R$ 6,09 bilhões, em valores atuais), de acordo com a Secretaria de Energia, o que o transforma em estratégico para o país, dado o problema crônico de falta de reservas em dólares na Argentina.
Uma parte da obra é o Gasoduto de Integração Federal, de 122,8 km, entre Tío Pujio e La Carlota (ambas na província de Córdoba), ligando o Gasoduto Central ao Gasoduto Norte.
Para a sua conclusão, no primeiro semestre de 2025, ainda está prevista a reversão do fluxo em quatro plantas compressoras (Lumbrera, Lavalle, Dean Funes e Ferreyra) invertendo, assim, a direção do gás que vinha da Bolívia pelo Gasoduto Norte.
Dos US$ 740 milhões (R$ 4,5 bilhões) de investimento, US$ 540 milhões (R$ 3,3 bilhões ou 73%) foram financiados a partir de um empréstimo com a CAF (Banco de Desenvolvimento da América Latina e Caribe).
O acordo foi anunciado pelo então ministro da Economia e rival de Milei na campanha presidencial, Sergio Massa, em janeiro de 2023, e aprovado em abril do mesmo ano, ainda durante o governo Fernández.
Milei só assumiria a Casa Rosada oito meses depois, em dezembro.
Seu governo defende que a obra teve início em fevereiro de 2024, por uma decisão da atual gestão.
Em uma publicação no X, a Chefatura de Gabinete argentina comemorou a inauguração da ligação.
“Inauguramos a reversão do Gasoduto Norte, na província de Córdoba, um projeto estratégico para o país, promovido pelo atual governo”, anunciou.
O Gasoduto de Integração é uma obra complementar à etapa dois do Gasoduto Perito Moreno (antigo Presidente Néstor Kirchner).
Seu potencial de transporte é de até 15 milhões de m³ de gás por dia, abastecendo sete províncias argentinas: Córdoba, Salta, Jujuy, Santiago del Estero, Catamarca, La Rioja e Tucumán, também por meio de estruturas já existentes.
A propaganda de um projeto de infraestrutura é um ponto fora da curva na agenda do presidente ultraliberal. Uma de suas primeiras medidas foi justamente o congelamento de obras e novas licitações.
Isso era apontado pelo governo como necessário para reduzir gastos, mas também acertou em cheio o setor da construção.
Uma nota divulgada pelo governo relata que, quando Milei assumiu o cargo, a primeira seção da obra não tinha sido atribuída ao vencedor da licitação e estava superfaturada, enquanto as outras duas seções não foram licitadas.
“Em fevereiro deste ano, por decisão do governo nacional, as obras começaram e, nove meses depois, elas estão concluídas.”
“Vamos recuperar a autossuficiência energética que foi destruída pela administração anterior”, afirmou na cerimônia de lançamento do trecho o ministro da Economia, Luis Caputo.
Alberto Fernández inaugurou em 9 de julho de 2023 o primeiro trecho de outra obra fundamental para o transporte do gás natural de Vaca Muerta aos principais centros consumidores: o GPNK (Gasoduto Presidente Néstor Kirchner).
Ao chegar ao poder, Milei elegeu Cristina Kirchner ex-presidente, viúva de Néstor e ex-vice-presidente de Fernández como uma de suas principais antagonistas políticas. E o processo de “deskirchnerização” empreendido pelo atual governo tem diferentes capítulos.
Um deles foi mudar o nome do CCK (Centro Cultural Kirchner), um prédio histórico de Buenos Aires transformado em espaço de manifestações artísticas e que homenageava Néstor, para “Centro Cultural Palácio Libertad – Domingo Faustino Sarmiento” (outro ex-mandatário).
Em novembro, viria o golpe mais duro, com a troca de nome do GPNK para “Gasoduto Perito Francisco Pascasio Moreno”, cientista e desbravador da Patagônia e que também dá nome a um dos mais famosos campos de gelo do país.
Em uma publicação em seu site oficial, a Secretaria de Energia sob Milei diz que o GPNK enfrentou atrasos e custos elevados devido à gestão anterior, com a licitação inicial suspensa em 2019 e retomada em 2021.
A construção do primeiro trecho foi concluída sem as plantas compressoras de Tratayén e Salliqueló, essenciais para o seu funcionamento pleno.
Segundo a pasta, Milei herdou o projeto inacabado, resultando em importações caras e dívidas de US$ 11 milhões (R$ 67 milhões), e o atual governo finalizou o gasoduto, agora operando a 24 milhões de m³/dia, após concluir as plantas em julho e outubro.
Procurado pela reportagem, o Ministério da Economia da Argentina ainda não respondeu.
Mesmo contando com a reserva de Vaca Muerta, nas últimas duas décadas, os argentinos importaram US$ 20 bilhões (R$ 121,8 bilhões) de gás boliviano.
Só que além da economia potencial para os cofres argentinos, as reservas da Bolívia estão em declínio e podem não estar disponíveis após 2029, o que também preocupa o Brasil.
No ano passado, o Brasil assinou um acordo com a Argentina para a importação de gás a partir de Vaca Muerta, apesar dos atritos entre o presidente Lula (PT) e Milei.
O acordo prevê a importação de três milhões de metros cúbicos de gás por dia, com possibilidade de chegar a 30 milhões de metros cúbicos diários em 2030, a um preço mais competitivo do que o do mercado interno.
Os estudos em andamento consideram quatro rotas para a importação: uma pelo Uruguai, uma pelo Paraguai, um terminal de gás liquefeito e a mais provável e rápida delas, a inversão de fluxo do gasoduto Bolívia-Argentina. Uma opção ligando Argentina e Uruguaiana (RS) permanece em discussão.
DOUGLAS GAVRAS / Folhapress