Milei delira sobre indústria do cinema argentino, diz a cineasta Lucrecia Martel

BAGÉ, RS (FOLHAPRESS) – Lucrecia Martel está à vontade no interior. “Nunca tive boas conversa sobre cinema em grandes festivais”, diz a cineasta argentina, homenageada no 15º Festival Internacional de Cinema da Fronteira em Bagé, a 370 km de Porto Alegre. “Nos festivais pequenos, se encontram os seres humanos”.

Artista querida em Cannes e Veneza, onde presidiu o júri do festival de 2019, Martel detesta o estresse do tapete vermelho e as interações com executivos. “A eles não interessava o que eu tinha a dizer, e nem a mim interessava o que eles tinham a dizer”.

A diretora passou quatro dias em Bagé, entre 23 e 27 de abril, e nesse tempo deu uma aula magna, percorreu pontos culturais da cidade e conversou com moradores do pampa.

O isolamento de uma cidade fronteiriça lhe é familiar. Natural de Salta, na divisa com a Bolívia e o Chile, a cineasta fez de sua terra natal o cenário dos seus três primeiros longas, “O Pântano” (2001), “A Menina Santa” (2004) e “A Mulher sem Cabeça” (2008).

“As metrópoles latino-americanas são as que concentram os pressupostos de cultura, instituições, os canais de televisão. Esse desenvolvimento regional tão desigual é parte dos problemas que temos.”

A dominação cultural e a relação de classes são temas constantes em seu trabalho. “Zama”, de 2017, volta ao século 18 para abordar as raízes do colonialismo na Argentina. Seu trabalho mais recente, “Chocobar”, ainda inédito, é um documentário sobre o líder indígena Javier Chocobar, assassinado em 2009 a mando de fazendeiros contra quem sua comunidade tinha uma disputa de terras.

“Não vamos remediar nossos problemas profundos se não compreendermos que há uma população sobre a qual seguimos sustentando um conceito de ideias de desqualificação, com o único propósito de mercantilizar seu tempo e espaço”, diz.

Para a diretora, a desvalorização de culturas indígenas da América Latina em historiografias cobra seu preço na hora de lidar com crises modernas. “O desenvolvimento econômico industrial nos está levando a um abismo iminente. Que nesse ano tenha tido 60º C no Rio de Janeiro é um sinal inequívoco”.

A resposta para esse abismo pode estar no modo de vida de outras sociedades. “A reserva de informações que há em culturas não ocidentais do nosso continente pode conter conhecimentos que nos ajude a sair dessa situação”, afirma.

Em Bagé, o prêmio foi para “A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, que se passa na comunidade guarani Tekoá Tamanduá, na divisa do Brasil com a Argentina. “Me preocupa que não tenhamos curiosidade pelo que nos rodeia, e dentre o que nos rodeia estão os povos indígenas”, diz. “Para não ser cruel, para não ser bruto, não é preciso ser bom. É preciso ter curiosidade.”

Em paralelo, Martel acompanha o que acontece no INCAA, o Instituto Nacional de Cinema e Artes Audiovisuais. O órgão de fomento e promoção cultural argentino é alvo do presidente Javier Milei, que ordenou sua reformulação após recuar da tentativa de extingui-lo. Em abril, o instituto teve a maioria das atividades interrompidas por um prazo de 90 dias.

“Este homem está analisando as coisas de uma maneira estranha. Ele acredita que toda a indústria cultural é fruto de políticas das forças opositoras a ele, que são fundamentalmente o kirchnerismo. É delirante a situação”, diz.

Ela chama a lógica de autorregulação do mercado de Milei de ingênua, e critica as credenciais da equipe econômica para conduzir uma reforma estrutural.

“Meu maior problema com esse governo é que se são todos tão espertos, tão inteligentes e sabem tanto de economia, em vez de destruir coisas que são prováveis indústrias e fontes de trabalho, por que não saná-los?”, pergunta. “O INCAA não funciona bem. Tem que melhorar? Sim. Tem que fechar? Não.”

Entretanto, Martel diz que é preciso se questionar o que houve nos últimos 20 anos na Argentina para que uma “figura messiânica” como Milei tenha surgido. “É fácil tirar sarro de Milei por seu cachorro, pelas ‘forças do céu’ e pelo que ele faz, mas não é tão fácil compreender que chegamos a isto por um descontrole no manejo do dinheiro público e um debilitamento das instituições.”

Apesar de estar próxima do discurso de governos anteriores, ela conta que tem interesse sincero em conversar com quem elegeu Milei. “Não sou da ideia de que tem que se ‘cancelar’ os libertários. Desejo falar com as pessoas que estão imaginando um país a partir deste novo governo, porque me parece que desconhecem os esforços que temos feito na cultura para avançar.”

Para Martel, o ataque do presidente ao INCAA também torna a produção argentina ainda mais vulnerável na competição com a indústria cinematográfica dos Estados Unidos, dificultando o espaço em salas de cinema ou a taxação de produções americanas.

“O livre mercado é livre somente para quem o domina”, opina. “É tão brutal ter sido uma colônia e não deixar de sê-lo, que isso se manifesta não somente na cultura, se manifesta na nossa economia”.

A cineasta defende uma união maior entre os países da América Latina. “O que temos que tentar remediar para o futuro é ter uma memória em comum”, diz. Para isso, deseja colaborar na construção de uma comunidade, a partir do cinema e da participação em festivais regionais. “A essa altura da minha vida, a única coisa que quero é ser útil.”

O jornalista viajou a convite do festival

CARLOS VILLELA / Folhapress

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