SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A decisão americana de autorizar a Ucrânia a atingir alvos na Rússia com mísseis de longo alcance pode não alterar o rumo da guerra que completa mil dias nesta terça (19), mas pode ter grande impacto político a depender do uso que Kiev fizer do aval.
Um exemplo claro disso foi dado pela França, cujo chanceler disse nesta segunda (18) que considera dar a mesma autorização no caso de seus mísseis de cruzeiro ar-terra Scalp-EG, gêmeos do britânico Storm Shadow, ambas armas que já estão no arsenal ucraniano.
Se fornecer a versão que opera do míssil, Paris permitirá seu emprego contra Moscou: a capital russa fica dentro dos 560 km de alcance do modelo. Até aqui, tudo indica que os franceses e britânicos só entregaram, em números reduzidos, versões de exportação com entre 250 km e 290 km de alcance, que já foram usadas contra a Crimeia.
No caso americano, tudo depende das versões do ATACMS, o míssil tático liberado segundo relatos da imprensa americana por Joe Biden no modelo com até 300 km de alcance, o chamado Block 1A. Outras variantes vão de 140 km a 220 km.
Na sua versão mais capaz, o míssil coloca em risco uma fatia considerável da Rússia europeia, a porção mais habitada e desenvolvida do maior país do mundo. Cidades como Smolesnk, Voronej, Belgorodo, Kursk, Rostov-do-Don e outras estariam na mira.
Como seria previsível, Moscou reagiu aos relatos sobre a decisão de Biden reiterando as ameaças que já foram feitas anteriormente pelo presidente Vladimir Putin que, levadas ao pé da letra, sugerem o risco até de um confronto direto com a Otan, a aliança militar liderada por Washington.
Ressalvando que não houve anúncio formal de Biden, o porta-voz Dmitri Peskov acusou a administração do democrata de “jogar gasolina no fogo e provocando tensão” na guerra. Biden fica no cargo até passar o bastão para Donald Trump, visto como alguém que irá jogar contra os interesses de Kiev, em janeiro.
“Se tal decisão foi realmente formulada e levada ao regime de Kiev, então isso é uma nova rodada de tensões, qualitativamente novas, e qualitativamente uma nova situação do ponto de vista de envolvimento dos EUA neste conflito”, afirmou.
A mudança de política americana foi vazada após um dos maiores ataques aéreos russos na guerra, ocorrido no domingo (17). O impacto foi além das fronteiras ucranianas: virou tema de debate na discussão da declaração do G20 na reunião que ocorre no Rio do grupo.
A ação deixou ao menos sete mortos e visou o sistema energético ucraniano, que já cambaleia com 2/3 de sua capacidade produtiva destruída. Após poupar mísseis em repetidos ataques com drones, Moscou parece ter começado sua ofensiva visando a moral ucraniana no inverno, empregando 120 armas de precisão no ataque.
Nesta segunda, todas as regiões da Ucrânia estavam sob algum tipo de blecaute programado para poupar energia. Com o frio se acentuando no Hemisfério Norte, o aquecimento que depende de eletricidade é vital.
Outras 11 pessoas morreram na região de Sumi em um segundo ataque na noite do domingo. Nesta segunda, ambos os lados trocaram ações com drones, com os ucranianos lançando 59 aparelhos contra a Rússia, 2 deles visando Moscou, sem relato de danos. Em Odessa, contudo, um ataque russo matou ao menos dez pessoas pela manhã.
Desde que a ideia da autorização passou a ser circulada, e demandada quase que diariamente pelo presidente Volodimir Zelenski, Putin reiterou o risco de uma guerra com o Ocidente e determinou a revisão de sua doutrina de emprego de armas nucleares táticas, supostamente dedicadas a teatros militares restritos.
Até aqui, sua dissuasão, ainda que chamada de blefe pela Otan, vinha funcionando. Com efeito, nesta segunda o sempre prudente governo alemão reafirmou que não irá fornecer mísseis de longo alcance Taurus, que podem atingir alvos a 500 km, a Kiev.
Tal divisão é uma constante na Europa, com o beligerante presidente polonês, Andrzej Duda, afirmando nesta segunda que a decisão americana pode mudar o jogo na guerra.
Não é bem assim, contudo, como ressalvou o chanceler lituano, Gabrielius Gandsbergis, durante um encontro com seus pares em Bruxelas. “Eu não estou abrindo o champanhe ainda, porque não sabemos qual é o número real de mísseis que a Ucrânia tem, se podem fazer a diferença no campo de batalha”, afirmou.
Especialistas tendem a dizer que não, dada a escassez desse tipo de armamento. O arsenal franco-britânico da arma não supera os mil mísseis, dos quais aparentemente apenas algumas dezenas foram dadas a Kiev.
Mas tudo depende do que os ucranianos querem fazer com eles. Mesmo na sua configuração de menor alcance, eles podem atingir qualquer coisa entre 100 e 200 bases aéreas de Moscou na Rússia, sugerindo um impacto militar maior do que o usualmente aceito.
Mas o fato é que na Crimeia, após alguns ataques bem-sucedidos, eles foram poupados, seja pelo altíssimo custo (no mínimo cerca de R$ 6 milhões a unidade), seja pela maior eficácia da defesa aérea contra as armas.
Uma deputada ucraniana, Mariia Ionova, afirmou à BBC nesta segunda que os mísseis “não são uma bala de prata contra nossos inimigos comuns”. Já o chanceler da União Europeia, Josep Borrell, afirmou esperar que os integrantes do bloco liberem o uso de tais armas.
De seu lado, a russófila Hungria protestou. O chanceler Peter Szijjarto disse, na reunião em Bruxelas, que a decisão americana é “surpreendentemente perigosa”.
Em solo, os russos seguem avançando em Donetsk, tendo tomado mais uma cidade naquela região do leste ucraniano. E no sul da Rússia seguem os combates na contraofensiva de Putin para retomar Kursk, área invadida por Zelenski em agosto, naquilo que o Ocidente diz ser a estreia da Coreia do Norte ao lado de Moscou na guerra.
IGOR GIELOW / Folhapress