Moçambicano na Flip imagina inglês decretado língua oficial de repente

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Imagine a situação: o Parlamento decide mudar a língua oficial do país, substituindo o português pelo inglês.

Nas horas seguintes, o lugar vira do avesso: o presidente da República faz um pronunciamento no idioma recém-aprovado, e parcela baixíssima da população entende o que ele quer dizer; os diretores de escola entram em desespero, os professores de português mais ainda; os vendedores já não sabem se a moeda local continua valendo ou se adotam o dólar para fazer negócio.

Já seria uma confusão no Brasil, mas o país tomado pela reviravolta é Moçambique, onde a barafunda é ainda maior. Na nação africana, a realidade linguística é mais complexa que a nossa: cerca de metade da população domina o português e frações expressivas, especialmente nas áreas rurais, preservam fortemente seus idiomas originais, como o macua e o changana.

Ou seja, a língua oficial mal tinha sido incorporada de maneira abrangente e, de repente, outro idioma foi imposto aos habitantes.

Este é o mote inicial de “Moçambique com Z de Zarolho”, romance de Manuel Mutimucuio, um dos autores da programação oficial da 21ª edição da Flip, a Festa Literária Internacional de Paraty, que começa nesta quarta (22). O moçambicano participa de um debate ao lado da poeta carioca Tatiana Pequeno na quinta-feira.

Esse cenário, a tal ponto perturbador que se revela cômico, é apresentado por Mutimucuio a partir de dois pontos de vista. O primeiro é de Djassi, um deputado que votou contra a chamada Lei do Renascimento Moçambicano e, derrotado, precisa buscar novas articulações para não perder cacife político.

O segundo é de Hohlo, que durante o dia é uma espécie de faz-tudo da família de Djassi e, à noite, estuda numa escola pública a fim de melhorar seu domínio da língua portuguesa. Vive na periferia da capital Maputo, mas tem origem na região de Ndindiza, onde se comunicava em changana.

A trama pode soar insólita à primeira vista, mas conversa com a realidade quando se observa a elite de Maputo nos últimos dez anos, explica Mutimucuio. Ele se refere a uma faixa da população que detém o “extremo do privilégio”, simbolizado pelas escolas internacionais, com todas as suas aulas dadas em inglês —semelhanças com certo estrato das grandes cidades brasileiras não são mera coincidência.

Em relação ao total de colégios no país africano, a fatia anglófila é mínima, mas esse circuito tende a gerar, segundo o autor, os formadores de opinião do futuro moçambicano, como políticos e líderes empresariais.

“Tudo isso não seria dramático se significasse apenas o multilinguismo dos moçambicanos, fenômeno comum em países africanos”, afirma o romancista de 38 anos em entrevista a este jornal.

O problema, continua ele, “é que a expansão da língua portuguesa é construída às expensas da riqueza linguística do país –embora ainda relativamente pequeno, cresce o número de moçambicanos que, tendo o português como primeira língua, não fala fluentemente qualquer outra língua nacional das mais de uma vintena de línguas autóctones, até recentemente os únicos idiomas”.

“E a emergência do inglês, se não mortal para a língua de Camões, parece representar o mesmo risco para as línguas africanas originais”.

Na bagagem que ele traz de Moçambique ao Brasil, há esse alerta em relação aos rumos da educação e da cultura do seu país. Carrega, por outro lado, uma boa nova. Na sua opinião, “a literatura moçambicana vive o seu melhor momento”, um fenômeno que pode ser explicado por uma conjunção de fatores.

“O analfabetismo ainda é muito alto, mas vem caindo nos últimos anos. Há mais pessoas lendo e escrevendo”, diz. Além disso, o número de editoras é crescente, e os autores mais jovens se sentem mais à vontade para furar o que Mutimucuio chama de “bloqueio psicológico” em torno da possibilidade de publicar livros no país.

Escritores veteranos e consagrados, como Paulina Chiziane, Mia Couto e João Paulo Borges Coelho, se mantêm em plena atividade enquanto nomes das novas gerações conquistam prêmios e se firmam no mercado editorial. Entre esses últimos, Mutimucuio cita Dany Wambire (“A Mulher Sobressalente”), Mbate Pedro (“Vácuos”) e Almeida Cumbane (“Ilusão à Primeira Vista”).

Em maior ou menor medida, esses seus conterrâneos compartilham a visão de Mutimucuio sobre a literatura. “Minha motivação é pôr um espelho diante dos problemas da sociedade, e cada um de nós verá se gosta do reflexo ou não.”

MOÇAMBIQUE COM Z DE ZAROLHO

Preço R$ 50

Autoria Manuel Mutimucuio

Editora Dublinense (126 págs.)

NAIEF HADDAD / Folhapress

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