NOVA DÉLI, RAJASTÃO E VARANASI, ÍNDIA (FOLHAPRESS) – A maior eleição do planeta, em meio a um curso de 45 dias na Índia, traz o favorito premiê Narendra Modi montado sobre uma plataforma que mistura radicalismo religioso hinduísta e progresso, com uma ênfase no primeiro item que remete aos momentos mais sombrios dos quase 77 anos da história da república atual.
Isso é aferível por exemplo no caminho de Jodhpur a Jaisalmer, porta de entrada para o mítico deserto de Thar, no leste indiano, onde três são as certezas para o visitante nestes dias. Ele encontrará vacas impunes na pista, muitas estradas em excelentes condições e um mar de bandeiras cor de açafrão.
Enquanto o primeiro item é um clássico do país que sacraliza os bovinos, os dois outros itens remetem diretamente à campanha eleitoral de Modi, no poder desde 2014.
A Índia promove, desde 19 de abril, um megapleito em sete etapas, com voto escalonado pelos 37 estados do país para quase 1 bilhão de eleitores. O previsível resultado do processo, em sua terceira fase, sai em 4 de junho.
Modi tem, segundo pesquisas, cerca de 75% de popularidade. Seu BJP (Partido do Povo Indiano, na sigla hindi) e aliados podem conquistar 400 das 543 cadeiras do Parlamento, cimentando o já enorme poder do premiê.
Ele se assenta, simbolicamente, pela estrada impecável em 15 dias por terra no Rajastão, só foram vistas vias de má qualidade em trechos remotos. O país está cortado por obras de infraestrutura, com o dobro de aeroportos que tinha quando Modi assumiu e uma rede nova em folha de superestradas, que até evitam as sagradas vacas por serem feitas sobre elevações artificiais.
A miséria indiana segue mais ou menos intocada na superfície, mas a economia vai para frente. Há caos urbano e lixo por todo lado, mas também avanços visíveis: a água que só chegava a cerca de 15% dos vilarejos rurais agora está em 75%, ainda que em vários na forma de poços que vertem o líquido uma vez por dia, como no entorno de Jaisalmer.
Na capital, Nova Déli, a região central está irreconhecível em comparação a uma visita de 2016. Mendigos, sujeira excessiva e até vacas e macacos escassearam. O mesmo ocorreu em Varanasi, cidade sagrada às margens do rio Ganges. O motivo, dizem moradores, foram reuniões nos locais do G20 em 2023, quando a Índia presidiu o grupo.
“A vida melhorou muito”, afirma o guia Yadav, que logo passa a desfiar os feitos de um outro Modi: o salvador da fé dos hindus como ele. “Logo depois que ele trouxe o Senhor Rama de volta para casa, pediu para todos usarem a bandeira”, conta.
A bandeira em questão é de cor açafrão, que também está no estandarte nacional e nos símbolos do BJP. Ela alude ao hinduísmo, professado por 80% dos 1,4 bilhão de indianos segundo o censo de 2011, e se apresenta lisa ou com imagens de deidades como Rama ou o deus-macaco Hanuman, quando não do próprio Modi.
A referência do guia foi o ato central da pré-campanha de Modi, quando ele inaugurou parcialmente em janeiro o templo Ram Mandir, em Ayodhya, no mais populoso estado do país, Uttar Pradesh.
Obra de R$ 1 bilhão inconclusa, ela foi erigida no terreno onde ficava a mesquita Babri, do século 16, que segundo os hindus fora feita sobre o local onde nasceu Rama, uma das encarnações do deus Vishnu e objeto de intenso culto no país.
Em 1992, uma turba liderada pela RSS (Organização Voluntária Nacional) destruiu a mesquita, em protestos que deixaram 2.000 mortos, a maioria muçulmana. Criada em 1925, a entidade esposa o supremacismo hindu e um de seus ex-membros matou o líder Mahatma Gandhi (1869-1947), que era simpático às minorias.
A RSS é associada à violência sectária brutal da partilha da antiga Índia Britânica, que formou o Paquistão como terra muçulmana. Da costela do grupo saiu o BJP, e, quando foi governador do estado de Gujarat, Modi teve o visto para os EUA que hoje o cortejam negado devido às suas políticas discriminatórias contra islâmicos.
Em 2002, uma onda de violência contra muçulmanos resultou em mais de mil mortos, mas Modi foi inocentado da acusação de leniência. Outras minorias do país, como sikhs e budistas, também sofrem discriminação, mas o foco do BJP é o islamismo.
As bandeiras tomaram o país em homenagem ao templo, um símbolo do renascimento hindu promovido por Modi, e se misturam ao alaranjado de sua sigla. No Rajastão, em duas semanas de rodagem só foi possível avistar um outdoor do rival Partido do Congresso, em Jodhpur.
A campanha maciça de Modi vai direto ao ponto: traz o premiê em poses pias, com suas típicas roupas indianas e, várias vezes, com adereços religiosos que fariam corar os políticos de extração evangélica brasileiros. Um outdoor diz: “A fé não será adulterada”.
Em outro, ele aparece como um saddhu, um homem santo hindu. Seus marqueteiros o pintam como um asceta sem posses, ao contrário da rica dinastia familiar do Partido do Congresso, dos descendentes de Gandhi. É visto como distante dos prazeres carnais, só admitindo ter fugido de um casamento arranjado na adolescência quando a imprensa descobriu a mulher, em 2014.
Aqui e ali vê-se assistencialismo, como a distribuição de ração alimentar para 80 milhões de pobres e a promessa de trazer eletricidade gratuita para toda a população em cinco anos.
Na campanha, a religião falou muito alto, péssimo presságio para os cerca de 200 milhões de muçulmanos do país. Em abril, Modi acusou os rivais de usarem “táticas mugais”, em referência à dinastia islâmica que governou a Índia por mais de 200 anos e que, em vários momentos, perseguiu duramente os hindus.
Desde então, chamou os muçulmanos de “infiltrados”, dados a “ter muitos filhos”, e na semana passada a Justiça tirou do ar um vídeo do BJP que acusava os rivais de querer dividir os bens de hindus com outras minorias. Em estados que governa, o partido adotou leis limitando casamentos interreligiosos com apoio de Modi, cujo governo nega ser discriminatório.
Se a virulência retórica irá sobreviver ao anúncio da vitória na eleição, é incerto. A Índia tornou-se objeto do desejo do Ocidente, com Joe Biden e Emmanuel Macron estendendo tapetes vermelhos para o antes rejeitado Modi.
É tudo negócio e geopolítica: o país é uma democracia com ambiente empresarial dinâmico, apesar dos favorecimentos apontados a amigos do premiê e as acusações de limitação à liberdade de expressão; tem um mercado imenso; e, de quebra, é um anteparo nuclear à vizinha e rival China.
IGOR GIELOW / Folhapress