Mohamed Mbougar Sarr escancara como silêncio ajuda o autoritarismo

FOLHAPRESS – Malamine vai à praça pública assistir a uma execução. É mais uma demonstração de força da milícia religiosa que controla uma cidade fictícia na África chamada Kalep. O pecado do rapaz e da moça: ter relações sexuais antes de se casar. A punição: humilhação e fuzilamento.

Na hora da morte, a mulher sussurra alguma coisa, mas ninguém a escuta. Tocado por aquela ideia –a de que a última mensagem da moça ecoou no silêncio– Malamine decide agir. Quer combater os milicianos. A sua será, porém, uma revolução de palavras. Ele recruta intelectuais da região para escrever um jornal.

A dinâmica entre o dito e o não dito é, desse modo, um dos motores do romance “Terra Silenciada”. O silêncio sugerido pelo título não se refere apenas ao segredo da mulher morta, como também ao relacionado à própria tomada de Kalep por extremistas quatro anos antes, evento diante do qual muitos se calaram.

O senegalês Mohamed Mbougar Sarr, 33, já tinha tocado leitores com “A Mais Recôndita Memória dos Homens”, romance pelo qual recebeu o prêmio Goncourt, o mais importante da literatura em francês. Foi o primeiro escritor da África subsaariana a receber o troféu.

O lançamento de “Terra Silenciada”, de 2015, deve agradar os fãs e conquistar novos com uma outra dose de lirismo e aguçada crítica social.

Escondidos num porão, o protagonista e seus companheiros redigem e editam o panfleto revolucionário e o distribuem pela cidade. A coragem –alguns dizem loucura– catalisa uma série de acontecimentos. Fica em evidência o papel do silêncio na instalação de regimes autocráticos e o poder da palavra no seu combate.

Sarr explora com profundidade e sutileza o contexto que permitiu a ascensão de organizações radicais em Kalep. Fala de um lugar na África, mas poderia se tratar de qualquer outro ponto do mundo.

Apesar de sua posição ser clara, Sarr é capaz de algum distanciamento. Trata do antagonista –Abdel Karim Konaté, o fervoroso chefe da polícia islâmica– com nuances, evitando julgamentos fáceis. Afinal, diz o narrador, “o mais selvagem e mais difícil dos homens sempre tem, no curso pedregoso de sua existência, algum momento de ternura”. Konaté é um violento radical. Mas tem também sua doçura.

As nuances de Sarr aparecem também na estrutura do texto. A narrativa se intercala com cartas das mães dos dois jovens executados no começo do livro. Apesar da perda em comum, elas seguem caminhos diferentes.

Uma delas acredita na necessidade de o povo se erguer contra a tirania da milícia religiosa. A outra não vê vantagem nisso. É quiçá um bom resumo das atitudes possíveis, no mundo, diante de situações extremas.

Sarr explora, ainda, a própria ideia de “povo”. Seus personagens não entram em acordo quanto à natureza das massas. Talvez sejam manipuláveis, talvez não. São imprevisíveis –para o bem e para o mal.

Alguns termos aparecem em árabe no texto, marcando o discurso religioso dos personagens. Mas o uso dessas palavras acarreta duas questões que poderiam ter sido mais bem pensadas na edição.

A primeira é o emprego do termo “Alá” em alguns trechos para se referir a “Deus”. Essa escolha é ruim, em termos religiosos, porque dá a entender que a divindade do Islã é diferente daquela do cristianismo. Só que “Alá” é apenas a palavra árabe para “Deus.” É como “God” em inglês ou “Dios” em espanhol. Muçulmanos, afinal, acreditam na mesma divindade do que os cristãos.

O outro problema é mais técnico. Sempre que grafamos uma palavra árabe em português, fazemos o que linguistas chamam de “transliterar”, porque o árabe tem um alfabeto diferente do nosso.

A edição brasileira mantém a transliteração do francês original. Há por exemplo a frase “Allahou akbar” (Deus é maior). O “ou” aqui é o modo francês de exprimir o som de “u”. Não faz sentido manter no Brasil. Seria mais correto deixar como “Allahu”, como falamos.

Podem parecer detalhes. Mas, no esforço de trazer novas narrativas para o público brasileiro, vale a pena se ater a essas minúcias –até porque, como Sarr mostra no seu romance, as palavras têm poder.

TERRA SILENCIADA

Avaliação: Muito bom

Preço: R$ 58 (266 págs.)

Autoria: Mohamed Mbougar Sarr

Editora: Malê

Link: https://www.editoramale.com.br/product-page/terra-silenciada

Tradução: Carla M.C. Renard

DIOGO BERCITO / Folhapress

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