RECIFE, PE (FOLHAPRESS) – Moradores da Vila de Jericoacoara, área do município de Jijoca de Jericoacoara (CE), a 297 km de Fortaleza, criticam o acordo firmado pela Procuradoria-Geral do Estado para a cessão de 49 mil metros quadrados de área do local à empresária Iracema Correia São Tiag, que afirma ser dona de cerca de 83% das terras da Vila de Jericoacoara.
O acordo teve repercussões no local. Moradores e empresários criticam a forma como a negociação foi conduzida pelo governo estadual e apontam dúvidas em relação à documentação.
“Todos são posseiros há várias décadas e as áreas públicas foram arrecadadas pelo estado há 26 anos sem que este particular [Iracema] tenha reclamado. Na verdade, mesmo antes da arrecadação das terras pelo Governo em 1998, a referida família jamais ocupou uma única terra dentro da Vila de Jericoacoara”, diz nota divulgada pelo Conselho Comunitário de Jericoacoara. A área da vila foi regularizada no âmbito fundiário entre 1995 e 1997.
Representante dos moradores, o conselho afirma que “os documentos geram muitas dúvidas porque são antigos”. Os representantes da comunidade dizem que pretendem fazer uma análise independente da documentação, que foi reconhecida pela Procuradoria-Geral do Estado.
O conselho diz também entender que seria mais vantajoso o governo do estado indenizar a empresária Iracema Correia São Tiago do que ceder terrenos em Jericoacoara.
“O governo não é obrigado a fazer esse acordo e pode lutar na Justiça contra este particular e, mesmo que seja derrotado, o que achamos improvável, tem a opção de indenizar o eventual direito”, diz nota de posicionamento.
A área sob disputa fica fora do Parque Nacional, gerido pelo ICMBio (Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade).
O primeiro secretário do Conselho Empresarial de Jericoacoara, Marcelo Laurino, afirma que foi surpreendido com o rito do andamento do acordo na PGE-CE.
“Como correu em sigilo, os maiores interessados não estavam tendo conhecimento. O acordo afeta a vida de todos nós e os negócios, porque haverá influência ao longo do tempo na percepção do turista”, diz.
“É uma grande falácia dizer que defende nossos interesses porque apenas cede áreas que não estão ocupadas porque as áreas livres fazem parte do conjunto paisagístico e ambiental da Vila de Jericoacoara”, acrescenta Laurino.
Ele diz que o Conselho Empresarial também procurou a Promotoria. Na segunda-feira (21), o Ministério Público do Ceará afirmou à Folha que analisa o caso para apurar eventuais irregularidades.
O Conselho Empresarial afirma que não descarta levar o tema à Justiça caso não obtenha êxito na manifestação que será feita no prazo de 20 dias concedido pela PGE-CE para posicionamento dos moradores sobre o acordo.
Em nota divulgada na segunda, a PGE diz que “conduziu um acordo de forma a proteger as famílias que já trabalham e residem na região, uma vez que, caso simplesmente se retirasse a área do real proprietário da matrícula do Estado, muitos residentes e donos de comércios locais poderiam ser obrigados, até judicialmente, a sair de suas casas e estabelecimentos”.
Ainda conforme o órgão, o reconhecimento do direito de propriedade não isentará a empresária de observar as regras ambientais e as restrições municipais para construções.
ENTENDA O CASO
A empresária apresentou os documentos sobre a propriedade das terras em julho de 2023 ao Idace (Instituto do Desenvolvimento Agrário do Ceará).
Segundo ela, em 1983, seu então marido comprou terrenos que totalizam 714 hectares na região, e ela apresentou a escritura pública de compra. Desse quantitativo, 73,5 hectares seriam na área da Vila de Jericoacoara, que possui, ao todo, 88 hectares.
Iracema apresentou a escritura de posse ao Idace propondo uma conciliação na qual ela cederia áreas que fossem tituladas a outras pessoas até dezembro de 2022. O espaço seria equivalente a 62% da área da Vila de Jericoacoara. Os demais lotes seriam devolvidos a ela.
Ao responder o pedido, o instituto propôs que toda a área da Vila de Jericoacoara seguisse sob a tutela do Estado do Ceará. Isso gerou um impasse, já que Iracema não aceitou a contraproposta.
No mês seguinte, o instituto enviou o caso para a Procuradoria-Geral do Estado, que reconheceu a legitimidade da escritura apresentada por Iracema e firmou um acordo extrajudicial.
Em nota, os advogados de Iracema Correia São Tiago afirmam que a empresária “unicamente comprovou sua propriedade, tendo proposto, logo no primeiro momento, receber aproximadamente 18% do que é seu”. E, que, “após longas análises e vistorias técnicas”, o acordo formalizado reconheceu o direito da empresária, com o ajuste de que ela receberia “algo em torno de 5% das áreas”.
Esclareceu ainda que Iracema foi casada com o empresário José Maria Machado, conhecido na região como proprietário da Firma Machado e de algumas fazendas, dentre as quais, Junco I e II. Ainda de acordo com a nota, “ele adquiriu os imóveis na região a partir do ano de 1979 com o objetivo de cultivar cajueiros e coqueiros”.
Iracema se divorciou oficialmente do empresário em 1995, e na partilha de bens ficou com a fazenda Junco I. Machado morreu em 2008.
“Iracema e seus familiares reafirmam seu compromisso com a comunidade da Vila Jeri, mas não abrirão mão de seus direitos, assegurados em lei, em favor de terceiros”, disseram os advogados em comunicado divulgado na segunda-feira.
JOSÉ MATHEUS SANTOS / Folhapress