SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Morreu nesta quarta-feira (9) o diretor teatral Aderbal Freire-Filho, aos 82 anos, um dos grandes encenadores brasileiros do século 20, devolveu à palavra a força da cena. Em uma centena de produções para o teatro, foi mestre do encontro do literário com a teatralidade.
A informação foi confirmada por sua assessoria de imprensa. Ele estava internado há meses devido a um acidente vascular cerebral.
Articulado e espirituoso, participou ativamente da vida cultural do país. Contador de histórias, questionador, falava como quem conversava com os filósofos, dramaturgos e encenadores que o precederam.
Em uma edição do “antiprograma” Arte do Artista, que apresentou na TV Brasil, deitou-se muito à vontade com seu notebook no chão do cenário feito de pedaços de peças do seu repertório, para anunciar o papo com editores de uma revista impressa de crítica e estética. Ali, víamos enlaçar o sério e o humor, a erudição e o chão do palco.
Nascido em Fortaleza, em 1941, filho do dono de uma livraria que faliu, tornou-se inventor nos palcos cariocas depois que preferiu o teatro à advocacia. Já atuava desde os 13 anos quando chegou ao Rio de Janeiro, em 1970.
O aperto para pagar o aluguel o impeliu à direção. Trabalhava então como ator, com os diretores Nelson Xavier e Cecil Thiré, em O Segredo do Velho Mundo, quando escreveu e montou uma adaptação de Flicts, do Ziraldo, para ser apresentada nos horários livres do teatro que ocupavam na Lagoa.
O mesmo artista que criou um dos site-specific mais emblemáticos da historiografia teatral brasileira, A Morte de Danton, de 1977, também pôs em cena obras literárias na íntegra, os chamados romance-em-cena, como O que Diz Moleiro (2004), de Dinis Machado.
Tantas vias criativas atestam a inquietação de um experimentador que cultivou o prazer de trabalhar sobre a escrita de outros autores com um sentido próprio de fidelidade. Buscava a compreensão da ideia de teatro daquele texto para melhor expressá-la cenicamente.
Dizia preferir montar os dramaturgos vivos: “Fico na porta do teatro perguntando se Shakespeare chegou”, brincava.
Devoto debochado de Brecht, cogitava que, se o alemão fosse seu contemporâneo, teria se interessado pelas combinaçoes entre o dramático e o épico, tal como ele. Praticou, portanto, uma fidelidade desejante, em mutação.
Nos anos 1970 e 1980, Aderbal se dedicou a encenar uma geração de dramaturgos brasileiros como Flavio Marcio, Aldomar Conrado, Vianinha e Leilah Assumpção.
Ainda assinava Aderbal Júnior quando dirigiu Apareceu a Margarida (1973), primeira obra de Roberto Atahyde, uma representação do terror do autoritarismo na educação, em meio à intensa repressão política. Teve a temporada interrompida pela censura.
Embora o sucesso tenha sido creditado à estrela Marília Pêra, ali Aderbal já dava direção ao seu teatro: arranjar palavras, luz, sons e espaço como matéria bruta para compor viagens imaginativas, críticas à violência do exercício de poder.
Com esse espírito crítico, desceu os dez metros da cratera de um metrô do Rio, ainda em construção, para fazer dramaturgia com o espaço em A Morte de Danton (1978), de Buchner. Uma metáfora concreta das forças revolucionárias subterrâneas no enfrentamento da ditadura.
Para Aderbal, a liberdade não excluía a precisão. Na direção de atores e atrizes, julgava necessário que cada artista desenvolvesse sua compreensão do espetáculo, como coautor, para que na atuação não escapasse uma ideia equivocada da cena.
Não via vantagens no “espontaneísmo”. Marcava a movimentação como um coreógrafo, por mais que essa prática não fosse bem vista no teatro contemporâneo.
Quando Julia, a fictícia esposa do revolucionário francês em A Morte de Danton, envenena-se, sai de cena subindo à superfície do metrô. Para Aderbal, esse era um exemplo de solução à qual dificilmente chegaria pela improvisação, ou somente após uma série de sensos comuns como deixar-se cair ou deitar-se.
O que lhe interessava era a expressividade.
Por Mão na Luva, de 1984, com Marco Nanini e Juliana Carneiro da Cunha, conquistou dois prêmios Mambembes (MinC). Vivia um período de intensa troca com a América Latina, principalmente com o Uruguai, onde levou o prêmio de melhor espetáculo estrangeiro de 1985.
Em 1990, fundou o Centro de Demolição e de Construção do Espetáculo, em uma ocupação-recuperação do Teatro Glaucio Gil, materializando a ideia de que no teatro “não há regras, as formas são demolidas e reconstruídas”.
Lá estreou A mulher carioca aos 22 anos, romance de João de Minas que Aderbal achara anos antes em um sebo e comparara a Nelson Rodrigues. As 210 páginas do livro tornaram-se quatro horas de um romance-em-cena que investia radicalmente na narratividade e renderia ao diretor o Prêmio Shell.
Nos anos seguintes conduziu o público pelas salas do Palácio do Catete para contar a trajetória de Getúlio Vargas, em O Tiro que Mudou a História (1991), e espalhou cenas de Tiradentes, Inconfidência no Rio (1992) por museus, ruas e porões, convidando grupos de espectadores a realizarem o percurso em ônibus fretados.
Em 1994, Aderbal passa a dirigir o Teatro Carlos Gomes, onde montou A Senhora dos Afogados, de Nelson Rodrigues.
Com tantos nomes de vulto em sua trajetória, é impossível sintetizar todo o frisson que suas produções causaram – como o Hamlet despojado de Wagner Moura, em 2008, que irritou parte da crítica e foi dito “o Hamlet de uma geração” por outra.
Nos anos 2000, também ganharam força seus romances-em-cena, como Púcaro Búlgaro (2006), de Campos de Carvalho, e Moby Dick (2009), de Melville. O monstruoso não era construído no palco, onde quatro atores narravam, mas provocado na imaginação do espectador.
Aderbal já se definiu como coreógrafo de palavras, signos e ações. Foi um experimentador das matérias do mundo, o que talvez seja uma boa definição para um encenador de teatro.
A bonita parceria com Marieta Severo chegou a peças como As Centenárias, de Newton Moreno (2009), e a tragédia libanesa Incêndios (2013). Mantiveram uma relação de duas décadas, vivendo em residências separadas até que Aderbal sofreu um AVC em 2020 e ela montou uma UTI em casa para cuidar do marido.
Em um de seus trabalhos derradeiros, dirigiu Lucélia Santos e Beatriz Azevedo no Cabaré Transpoético (2019), inspirado pelo Cabaré Voltaire suíço, onde vanguardistas refugiavam-se em meio à Primeira Guerra Mundial.
Na última década, acirrou a crítica social em sua fala e escrita, e lamentou a desconexão da população com uma arte que, nos anos de chumbo, fizera-se porta-voz da luta política.
A quem lhe perguntasse sobre a importância do teatro para a sociedade, respondia: nenhuma. A quem se preocupasse com o futuro dessa arte, contudo, professava que chegaria o dia em que tudo seria feito por aplicativo – menos o teatro.
Com Aderbal, pudemos imaginar vivamente.
LUCIANA ROMAGNOLLI / Folhapress