Morre Alice Munro, Nobel de Literatura que foi mestra do conto, aos 92 anos

COPENHAGUE, DINAMARCA (FOLHAPRESS) – O mundo literário lamenta a perda de uma verdadeira mestra do conto, a canadense Alice Munro, aos 92 anos. Sua morte foi confirmada nesta terça-feira por seus agentes literários.

Seu legado como narradora perspicaz e seu posicionamento público contra a desigualdade de gênero continuará a inspirar gerações futuras.

Munro foi a primeira autora do Canadá a receber o Nobel de Literatura, sendo também agraciada com o prêmio Booker Internacional e o National Book Critics Circle Award, este último pelo livro “O Amor de uma Boa Mulher”, de 1998, por muitos considerado o seu livro mais importante, reunindo contos em que seu estilo cinematográfico —uma visão abrangente articulada à atenção aos detalhes em zoom— já se evidenciava.

A obra percorreria o mundo atraindo leitores de diferentes contextos. No Brasil, contudo, Munro passou a ser traduzida e mais lida a partir do Nobel e do lançamento do livro de contos “Ódio, Amizade, Namoro, Amor, Casamento”, publicado em 2014, no mesmo ano do prêmio. Agora, decerto deve conquistar novas e novos leitores.

Nascida em 10 de julho de 1931, em Wingham, Ontário, Alice Ann Laidlaw cresceu em uma pequena cidade da zona rural canadense que serviria de fonte de inspiração para suas narrativas e para a construção de suas personagens.

De família modesta e crescendo numa época de depressão econômica, Munro aproximou-se do universo literário graças ao forte interesse pela leitura que marcou sua infância. Chegou a frequentar por dois anos a Universidade de Western Ontario, onde conheceu o primeiro marido, James Munro.

Casaram-se em 1951, logo instalando-se na cidade de Victoria, na região de Vancouver, onde fundaram a Munro’s Books, livraria independente que se tornou espaço de referência e hoje, seis décadas depois, é uma das mais respeitadas livrarias no Canadá.

Seu primeiro livro foi lançado em 1968, “Dance of the Happy Shades”, colhendo elogios da crítica especializada. Munro tinha então 36 anos e recebeu o Governor General’s Award for Fiction, um dos mais prestigiados prêmios literários do Canadá.

O livro foi escrito ao longo de quase 15 anos, na passagem dos seus 20 aos 30 anos, quando se tornou uma mulher casada e mãe. Escreveu boa parte de seus contos enquanto seus bebês dormiam e, mais tarde, nas poucas horas em que frequentavam a escola.

Ali já se revelava uma autora capaz de manejar com destreza a intrincada tapeçaria das emoções humanas e os impasses que se escondem por trás de vidas aparentemente comuns.

Muitas histórias de Munro são mobilizadas pelas personagens e seu complexo funcionamento interno, que o conto permite revelar através de detalhes latentes de sentido. Sua literatura será lembrada pelas personagens femininas flagradas em situações mundanas, mas em processos de viragem, enfrentando dificuldades que a vida impõe —um câncer, o preconceito de classe ou a traição.

Munro soube percorrer um espectro múltiplo de personagens femininas, desenhando com uma notável economia de meios a complexidade das expectativas de meninas que crescem na zona rural, mulheres idosas em processo de demência, a jornada passional de mulheres de meia-idade ou as obsessões de uma poeta reclusa e solitária.

Professoras, secretárias, esposas, amigas, mães e filhas são flagradas em momentos de transformação, ou nas tentativas de escapar de um algum modo da vida, buscando saídas para as circunstâncias que, de certo modo, as mantêm cativas.

Em certo sentido ela se irmana com autoras como Virginia Woolf e Katherine Mansfield —mas, diferente da primeira, não investe em fluxos de consciência. Envolvidas em ações corriqueiras, as mulheres de seus contos vivenciam uma aventura interna que só se revela ao longo da leitura. Assim fuga, evasão e decisões existenciais são temas privilegiados, mesmo quando secundárias ou não explicitadas na trama.

Comparada ao russo Anton Tchékhov pelo crítico Harold Bloom, Munro fez do conto um grande gênero, sem para isso recorrer à exuberância do fantástico ou aos caprichos do simbolismo.

Seus contos são realistas e constritos, poderíamos dizer que são ibsenianos, lembrando o norueguês Henrik Ibsen, pois não julgam as ações que narram, deixando para quem lê uma margem de liberdade crítica.

Sua matéria é a vida como ela é, em declínio, metamorfose ou perdição, sob o véu da aparente normalidade —a vida naturalmente ordinária e por isso mesmo sempre singular, cativante, por vezes mesmo resistente à interpretação.

No gênero conto, Woolf valorizava a simplicidade e a humanidade, vendo ali a possibilidade de acertar o leitor em cheio com uma emoção súbita que é um tipo de entendimento mais agudo sobre a vida. O conto seria, assim, um meio de cognição das experiências emotivas que nos humanizam, se sustentam na capacidade empática de quem escreve em relação aos personagens, mesmo os menos virtuosos.

Os contos de Munro fascinam precisamente nesse sentido: reconectam seus leitores com a condição humana sem escapismo, mas são construídos sobre a intensidade emocional que percorre subterraneamente o enredo, sem ostentação. Ao fim da leitura, entregam ao leitor uma emoção singular, que fica ecoando. Munro reafirma a literatura como uma educação sentimental da qual não podemos prescindir.

Se, como já foi dito, a ficção é uma história que nunca se fecha, a literatura de Munro é uma afirmação persistente dessa compreensão da literatura como espaço de abertura onde aprendemos a percorrer os caminhos sinuosos de vidas alheias, sem o imperativo da identificação total ou do julgamento moral.

Margaret Atwood tem razão ao dizer que, não importa o quão conhecida Alice Munro se torne, ela deveria ser mais conhecida.

LAURA ERBER / Folhapress

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