Morre César Luis Menotti, o homem que inventou a seleção argentina

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A vida de César Luis Menotti, como a dos grandes personagens, foi uma contradição.

O técnico ligado à esquerda e campeão mundial em um torneio organizado pela ditadura militar. O defensor do futebol-arte que poucas vezes conseguiu fazer seus times jogarem tão bonito quanto prometia. O libertário que trabalhou com dirigentes acusados de corrupção, como Julio Grondona (1931-2014).

Ao mesmo tempo que falava de comprometimento em campo, aconselhava seu sucessor no Barcelona, o inglês Terry Venables, a não marcar treinos para o período da manhã porque as noites catalãs eram “fantásticas”.

Para o jornalista argentino Juan Pablo Varsky, Menotti foi o “inventor da seleção argentina”.

Morto neste domingo (5), aos 85 anos, ele teve um final de vida como oráculo. Com fãs declarados como Pep Guardiola, foi o responsável por bancar o novato Lionel Scaloni na seleção argentina. Foi o renascimento da equipe que venceria a Copa do Mundo de 2022, no Qatar.

Não foi revelada a causa da morte, anunciada pela AFA (Associação do Futebol Argentina).

“Falar sobre futebol me dá prazer. Converso sempre que posso”, disse ele, em entrevista à Folha, em 2017.

Era uma meia verdade, algo comum em sua vida. Ele não gostava de debater resultados. Via como consequência de um propósito maior: jogar o futebol como ele deve ser jogado. Como uma expressão cultural do povo argentino, da picardia, com ofensividade e o compromisso em divertir a classe trabalhadora que suava durante a semana para pagar o ingresso e ver seu time do coração aos domingos.

“É esse o nosso compromisso. O futebol é uma manifestação cultural. É muito mais do que o esporte”, opinou.

Em toda a sua carreira, conseguiu isso de fato em 1973, com o Huracán, campeão metropolitano, uma equipe cultuada até hoje no país pelo seu estilo. Foi esse triunfo que o catapultou à seleção após o fracasso alviceleste na Copa de 1974.

Ele fez o trabalho que culminou na conquista do Mundial de 1978. Um torneio feito para coroar a ditadura militar do então presidente Jorge Rafael Videla. Todas as vezes que os detratores de Menotti queriam fustigá-lo, mostravam foto dele cumprimentando o general após a vitória sobre a Holanda na decisão.

“Eu não sei como alguém pode se dizer de esquerda e andar de mãos dadas com militares”, criticou seu maior inimigo: Carlos Bilardo, o treinador que o substituiria no cargo e seria campeão no México, em 1986.

A rivalidade entre os dois marcou uma cizânia histórica no futebol sul-americano. Nunca dois treinadores tão importantes se detestaram por tanto tempo e tão publicamente quanto eles. Bilardo, ainda vivo, mas com doença degenerativa que o afasta de entrevistas, era a antítese de Menotti: o resultado a qualquer custo. O que importava era vencer, nada mais.

“Minha diferença com Bilardo não é de estilo de futebol. É pessoal. Nós pensamos de maneiras diferentes. Não que não tenha diálogo com gente que não pensa como eu. Faço isso todas as semanas. Mas com ele não existe diálogo. Temos visões diversas de sociedade, e não posso estar ao lado dele”, afirmou à Folha, em 2017.

Na mesma entrevista, ele considerou ser impossível voltar a trabalhar na AFA (Associação de Futebol Argentino), o que faria dois anos depois.

Sua morte foi anunciada no intervalo da partida entre Estudiantes e Vélez Sarsfield, que decidiam a Copa da Liga Argentina. O estádio, lotado, aplaudiu o técnico, inclusive os torcedores do clube de La Plata, ao qual Bilado está ligado de maneira histórica.

A conquista em 1978, que marcaria sua trajetória, fez com que, de maneira irônica, fossem encobertos problemas graves fora de campo: as mortes de presos políticos, o fim das liberdades individuais e a ausência de democracia.

Menotti causou polêmica ao não convocar o então garoto Diego Maradona. Em vez disso, levou Beto Alonso, do River Plate, time de Carlos Alberto Lacoste, militar influente no governo e responsável pela organização da Copa do Mundo.

Houve também a polêmica goleada por 6 a 0 sobre o Peru, que levou a Argentina à final no lugar do Brasil. A seleção da casa precisava fazer quatro gols de diferença, e por anos pairaram acusações de suborno aos atletas e dirigentes peruanos. Menotti sempre considerou as histórias “ridículas”.

Nascido em Rosário, Santa Fe, terra de Lionel Messi (que ele considerava um dos cinco melhores da história), César Luis Menotti foi um meia de chute potente, mas que não conseguiu chegar tão longe quanto poderia com o seu talento. Recebeu uma acusação que depois o acompanharia pelo restante da carreira: a de ser preguiçoso.

Encerrou a carreira no Juventus, da Rua Javari, e foi lembrado por não jogar jamais as partidas fora de casa. Não queria viajar. Trazia calças jeans de Buenos Aires para vender aos colegas de elenco.

Na seleção argentina, permaneceu até o Mundial de 1982, na qual fracassou. A Argentina, com a mesma base de 1978 e Maradona, naufragou.

“Ele é o melhor, de longe. Mas está cada vez mais preguiçoso”, constatou Grondona.

Após período no Barcelona, do qual saiu em 1984, passou por vários clubes, sem ter o mesmo sucesso de antes e, principalmente, sem mostrar, de maneira consistente, o futebol que tanto pregava.

Mas a imagem de Menotti e sua defesa intransigente de um estilo de futebol que agradasse aos olhos mantiveram sua fama e fizeram dele um pensador do jogo cada vez mais procurado. Chegou a criar uma escola de técnicos. Na festa de inauguração, Guardiola mandou uma mensagem de apoio, por vídeo.

“Que pena não poder estar aí para ouvir tanto conhecimento”, disse.

Menotti morre também como alguém que jamais teve preocupação em controlar a língua. Ao ser criticado pelo goleiro paraguaio José Lus Chilavert, respondeu de maneira irônica: “Gostaria de levar Chilavert às escolas para mostrar às crianças como o homem era antes do macaco”.

E, para horror de muitos argentinos, nunca escondeu que, para ele, o maior da história era Pelé, não Maradona ou Messi.

“Não gosto de colocar ordem. Mas, se você quer saber, Pelé é o maior de todos. O que ele fez como jogador não é desse mundo. Ele era o maior em uma época de jogadores espetaculares e ainda foi o grande nome do Brasil de 1970, na melhor equipe de futebol que vi jogar.”

ALEX SABINO / Folhapress

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