SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ninguém em casa podia dar um pio enquanto aquele homem falava, e ai das crianças se fizessem barulho até ele dizer “boa noite”. Do sofá, brasileiros hipnotizados diante da televisão respondiam à saudação a Cid Moreira, que morreu na manhã desta quinta-feira, aos 97 anos.
A notícia foi dada ao vivo na TV Globo por sua mulher, Fátima Sampaio, no programa Encontro com Patrícia Poeta. O apresentador estava internado em Petrópolis tratando uma pneumonia. Ele sofreu uma falência de múltiplos órgãos.
Quando deu o primeiro “boa noite”, na estreia do JN, em 1º de setembro de 1969, o Brasil estava longe de poder dormir em paz. Era o tempo do AI-5, o mais sombrio da ditadura militar, e a censura determinou que Cid Moreira dissesse aos brasileiros o contrário disso. Todos podiam ficar tranquilos, inclusive com a saúde do presidente Costa e Silva, ele estava “melhor, se alimentando bem” três meses depois, morreu.
Sob censura, a voz grave de Cid Moreira começava a unir o Brasil, em um complexo jogo de interesses entre a TV e a ditadura.
A televisão tinha, até então, apenas canais regionais, não havia como fazer uma transmissão para todo o território brasileiro. A criação de uma rede nacional foi um ótimo negócio para a TV e seus anunciantes, além de estratégia para o plano do regime militar de manter o controle político do país.
A Globo foi a primeira TV a se consolidar como rede, e o JN marcou o início desse projeto das emissoras brasileiras, facilitado por incentivos fiscais do governo e pela instalação da Embratel, a estatal que possibilitou a transmissão de sinais. “É o Brasil ao vivo aí na sua casa”, disse Cid Moreira ao fim da estreia do JN, para, em seguida, emendar o primeiro “boa noite” dos cerca de 8 mil que diria em quase 27 anos.
O locutor tinha 41 anos quando começou no JN, completaria 42 poucos dias depois, em 29 de setembro. Nascido em 1927, em Taubaté, no interior paulista, Cid escutava rádio até tarde da noite durante a infância e escondido dos pais, a dona de casa Elza e o bibliotecário Isauro Moreira.
O rádio era o grande veículo de comunicação, e Cid começava a prestar a atenção aos graves e agudos, ritmos, timbres e afinação, conforme narra a biografia “Boa Noite”, escrita por sua mulher.
Aos 16 anos, foi a uma festa na casa de um diretor da Rádio Difusora de Taubaté, onde aparelhos de som estavam sendo instalados para a apresentação de cantores. Cid pegou o microfone para brincar e disse “Boa noite para vocês”, imitando Carlos Frias, radialista que tinha uma crônica com esse nome, sobre a Segunda Guerra Mundial.
A brincadeira teve consequências. Algum tempo depois da festa, ele, que estudava para ser contador, foi pedir estágio no escritório de contabilidade da Rádio Difusora, mas acabou sendo levado ao estúdio para um teste. Tornou-se locutor aos 17 anos.
Meses depois, já apresentava programas de auditório. Em 1949, mudou-se para São Paulo, onde trabalhou na Rádio Bandeirantes e conheceu grandes nomes, como Dias Gomes e Janete Clair, que seriam dois dos maiores autores de telenovela do país.
O sucesso levou Cid ao Rio, em 1951, para a Rádio Mayrink Veiga, pela qual passaram estrelas como Cármen Miranda e Lamartine Babo. Lá, apresentou o programa da jovem cantora Maysa e conviveu com astros como Orlando Silva, Dorival Caymmi, Cauby Peixoto e Silvio Caldas. A cantora Elizeth Cardoso lhe ensinou o truque de chupar cravo para melhorar a voz.
Além das locuções de programas, chegou a atuar como galã de radionovela, e passou a ser reconhecido nas ruas por sua voz.
A cada novo trabalho, evidenciava a capacidade de interpretar, mais do que narrar, habilidade lapidada por textos brilhantes, como as crônicas de Stanislaw Ponte Preta, que apresentava na Mayrink. Sua voz ganhou tom de mistério na narração da série Além da Imaginação, na TV Rio, nos anos 1950. A TV brasileira tinha ainda audiência incipiente, mas Cid começou a se voltar ao novo veículo.
Sua voz, já conhecida do público, passava a se associar à imagem de um homem bonito, bem-apessoado, com os cabelos começando a ficar grisalhos. Quando estreou na bancada do JN, já tinha no currículo o Jornal da Vanguarda, da TV Excelsior, reconhecido pela criatividade e em tom menos empolado.
Com a vaidade aflorada, foi levado, por sugestão de amigos da publicidade, a se submeter a aplicações de silicone líquido na região entre os olhos, acima do nariz, com a intenção de minimizar um suposto vinco. A substância se espalhou pelo rosto e formou calombos, levando Cid a uma série de cirurgias corretivas.
A vaidade ainda estava por trás de outro arrependimento, esse de muitos anos depois, em 1993. Sexagenário e uma celebridade ligada à sobriedade, posou para a capa da revista Caras em uma banheira, com as pernas jogadas para cima, cheias de espuma, sob a manchete “O Jornal Nacional na banheira”. Quase foi demitido.
Nos quase 27 anos de bancada, noticiou de tudo. Nos primeiros anos, com a TV em preto e branco, e lendo o roteiro em um papel na bancada, não no teleprompter. O aparelho, acoplado à câmera e que projeta o texto a ser lido pelo narrador, foi introduzido no JN em 1971. Já utilizado anteriormente nos EUA, fazia inveja a Cid, que pensava que os locutores, olhando fixamente para a câmera, haviam decorado tudo.
A chegada das cores, em 1972, deu o que falar. José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, diretor da TV Globo, trouxe de casa suas melhores gravatas para emprestar a Cid. Nas primeiras transmissões, com pouco domínio técnico da novidade, a iluminação fazia com que o fundo azul por trás do apresentador refletisse em seus cabelos grisalhos, que ficavam azulados.
Outro problema foi a pele de Cid, superbronzeada pelas partidas de tênis diárias esportista convicto, só parou de jogar aos 89 anos. Em busca de um equilíbrio estético, teve de adotar ternos em tons pasteis e foi proibido de abusar de cores vibrantes, como laranja e verde, que chegou a utilizar, empolgado com a TV colorida.
Em quase três décadas de transmissões ao vivo, viveu momentos de sufoco engraçados, como quando matou, no ar, uma mosquinha que insistia em entrar no seu nariz, ou quando um operador de câmera se virou de costas para ele e abaixou as calças, enquanto Cid, sério, lia a notícia. E teve sufocos nada engraçados.
Em 1975, teve de ler um editorial escrito por Roberto Marinho denunciado que a ditadura havia censurado a novela das oito Roque Santeiro, que estrearia naquela noite. Era o primeiro desentendimento público entre a Globo e a ditadura, e a gravidade da ocasião levou Marinho a orientar diretamente Cid Moreira sobre o tom de sua vo z. Devia ser sóbrio, não tão forte, o texto já tinha força suficiente.
Em 1984, leu com a voz embargada e longas pausas uma sequência de tragédias. Um acidente aéreo havia matado 14 profissionais de TV, entre eles, colegas de Cid da Globo. Na sequência, o jornalista Samuel Wainer Filho e o cinegrafista Felipe Ruiz foram cobrir o acidente e, na volta, o carro em que estavam derrapou, bateu em uma árvore, e os dois morreram. Pela primeira vez, Cid deixou de dar boa noite.
Dez anos depois, em 1994, por determinação da Justiça, leu o direito de resposta do governador Leonel Brizola, em uma briga com a emissora dos Marinho. Passou 2 minutos e 57 segundos lendo um texto que detonava a rede, mantendo a placidez.
Sua saída do JN, em 1996, causou comoção, com cartas e mais cartas de telespectadores inconformados. Guardava com carinho uma homenagem do jornalista Carlos Heitor Cony. Dias após a troca de apresentadores, ele comentou em sua coluna na Folha a leitura de um editorial feita por Cid à véspera por seis meses, o apresentador seguiu no JN com essa função, até passar para a apresentação de reportagens especiais do Fantástico.
“Foi uma aula de locução”, escreveu Cony. “Muitos atores catimbados no palco não atingem o grau de correção e até mesmo de perfeição de Cid Moreira. Queiramos ou não, ele é um rosto (ou o rosto) do Brasil que amamos e detestamos.”
Aos 73, casou-se com Fátima Sampaio, sua quarta mulher, 36 anos mais jovem do que ele. Já com mais de 90, gostava de falar nas entrevistas sobre a sua vivacidade, inclusive na vida sexual.
As manchetes, nessa fase, também deram espaço ao lado difícil de sua vida pessoal. Sua única filha morreu de enfisema pulmonar, e Cid chegou a comentar em uma entrevista que a havia perdido para as drogas. Seus dois filhos, um deles adotado, travaram uma batalha judicial com o apresentador e tentaram interditá-lo.
No ano passado, em entrevista à Folha, Cid disse que tinha “planos para chegar aos 150 anos”, ao ser questionado se fazia algum plano especial para quando chegasse aos cem.
Na ocasião, ele relatou que enfrentava um problema no rim, descoberto pouco antes da pandemia, e fazia diálise com frequência, com ajuda da mulher, com quem foi casado por mais de duas décadas. Ele disse que, para se manter ativo, fazia pilates e esteira, depois de parar com o tênis, que jogou até os 89 anos.
Profissionalmente, seu sonho era trabalhar até o último dia, e ele se tornou influencer aos 92, em parceria com a sua mulher, que é jornalista. Seus vídeos iam de lives sobre a Bíblia a cenas de seu cotidiano e lembranças do tempo do JN.
Uma delas foi a de quando noticiou a morte de Carlos Drummond de Andrade, em 1987. Pela primeira vez, deixou a bancada e, de pé, com um livro na mão, leu um trecho do famoso poema do mineiro. “A luz apagou/ O povo sumiu/ A noite esfriou…” Olhando para a câmera, com a voz sussurrando, encerrou “José, e agora?”.
Fechou o livro e, elegantemente, saiu da frente das câmeras.
LAURA MATTOS / Folhapress