Morreu neste domingo o sociólogo, filósofo e ex-seminarista Danilo Santos de Miranda, aos 80 anos. Ao longo das quatro décadas em que dirigiu o braço paulista do Sesc, ele se tornou a figura mais longeva e relevante da cultura de São Paulo. Visto como uma mistura de mecenas com ministro da Cultura, era prestigiado e reverenciado como tal.
Miranda estava internado desde o início do mês no hospital Albert Einstein, em São Paulo. A causa da morte ainda não foi informada pela equipe médica.
Ele foi o responsável por transformar a entidade ligada ao setor do comércio na maior potência cultural do país. Seu espírito empreendedor e sua visão humanista da cultura, aliados ao orçamento bilionário da instituição, fizeram dele o principal gestor cultural do Brasil. Ou, como brincavam amigos e colegas, “a entidade dentro da entidade”.
Criado com a missão de promover o bem-estar social de um grupo específico de beneficiários –comerciários e suas famílias–, o Sesc, sob sua batuta, mais que dobrou de tamanho e se abriu para o Brasil e para o mundo.
Miranda inaugurou a grande maioria das unidades da instituição no estado e retirou suas catracas para o livre acesso às acolhedoras áreas de convivência, que misturam esporte, lazer, arte e alimentação, em meio a cidades carentes de espaços públicos de qualidade.
Criou um modelo de fomento que virou referência para políticas públicas de incentivo à cultura do país e estimulou a profissionalização de artistas, curadores e produtores ao estabelecer uma burocracia transparente, com editais e comissões.
Não à toa, volta e meia seu nome era ventilado como potencial indicado para o Ministério da Cultura, mas Miranda nunca recebeu um convite formal para o único cargo que poderia fazer com que deixasse o Sesc.
Recebia, sim, a cada eleição, pedidos de ajuda para elaborar projetos culturais de governo de todo o espectro político-partidário, que procurava atender sem distinção, apesar do alinhamento pessoal com as ideias do campo progressista.
Apaixonado por teatro, Miranda não escondia suas predileções pessoais no campo da cultura, mas promovia as mais diversas expressões artísticas à frente do Sesc, do erudito ao popular, de produções mais comerciais às mais experimentais.
“O que seriam das artes no Brasil sem o Sesc?”, perguntou a atriz Zezé Motta, em setembro passado, no palco do evento de 60 anos de trabalho social do Sesc com idosos. Fernanda Montenegro, ao lado, fez coro. “É isso mesmo! Nós sabemos na pele o que representa o Sesc na pessoa do professor Danilo Miranda.”
“Se não tivesse Danilo Miranda, não tinha teatro em São Paulo. Só teria musical”, afirmou o dramaturgo José Celso Martinez, o Zé Celso, em entrevista em abril deste ano.
Miranda tinha consciência do poder da instituição que representava, mas adorava ser pessoalmente reconhecido. Perfeccionista, dizia ter compromisso com a transformação e a excelência, tanto na programação quanto na infraestrutura do Sesc.
Nas muitas viagens que fez, gostava de conhecer os bastidores de equipamentos culturais pelo mundo, e ficou especialmente impactado por uma visita improvisada, ao final de um espetáculo, pelos corredores do lendário Bayreuth, o teatro de ópera projetado em 1876 pelo compositor Richard Wagner no sul da Alemanha.
À frente do Sesc, perseguiu parâmetros internacionais de produção ao mesmo tempo em que trouxe artistas renomados globalmente para os palcos paulistas da instituição.
A lista é extensa, e inclui expoentes tão diversos quanto a performer sérvia Marina Abramovic e o mestre japonês de butô, Kazuo Ohno, o trompetista americano Wynton Marsalis e o filósofo Edgar Morin, o diretor de teatro britânico Peter Brook e a atriz francesa Isabelle Huppert.
Alguns se tornaram amigos –assim como tantos expoentes da cultura brasileira– e frequentaram jantares na casa do Pacaembu, na zona oeste da capital paulista, onde Miranda vivia com a assistente social Cleo Regina. O casal comemorou bodas de ouro no ano passado. Teve duas filhas, Camila e Talita, e quatro netos.
Nascido numa família de classe média de Campos de Goytacazes, no Rio de Janeiro, em 1943, Miranda foi o terceiro dos quatro filhos de uma farmacêutica e um dentista, que também era jornalista e gostava de tocar violão para a família cantar reunida. A tradição levou o pequeno Danilo a calibrar a voz de contralto que revelaria depois em corais –e, mais tarde, nos incontáveis discursos e entrevistas de sua carreira.
Perdeu a mãe aos sete anos de idade, vítima de uma infecção nos rins com apenas 31 anos. E os meninos passaram a ser criados pela avó, Donana. Aos 11 anos, ingressou na Escola Apostólica dos Jesuítas, em Friburgo, no Rio de Janeiro, um internato religioso de intensa atividade intelectual e esportiva, sediado no Colégio Anchieta, onde estudaram o escritor Euclides da Cunha e o poeta Carlos Drummond de Andrade.
Fez parte da banda, do cineclube e das audições de sinfonias da escola. Criou uma academia de letras escolar, fundou um grêmio estudantil e participou de encontros do movimento estudantil ligado à União Nacional dos Estudantes. Mas a ideia de servir ao próximo, numa vida de renúncias, falou mais alto e o levou para o seminário.
“A vida religiosa fundamentou meu interesse pelo lado político, aquilo de você não ser só você mesmo, de abrir-se um pouco, perceber o entorno”, disse Miranda, em entrevista de 2014, à revista A Terceira Idade. “Um órfão tem muita facilidade para compreender os outros. À medida que você tem carências, você entende a carência externa.”
Há 60 anos, entrou no noviciado jesuíta de Itaici, no interior paulista, onde mergulhou nos estudos de grego, latim e filosofia. Acompanhava as notícias sobre o concílio pela transmissão em francês da rádio do Vaticano em meio a uma rotina de exercícios espirituais e longos períodos de isolamento.
Durante um desses exercícios, aconteceu o golpe militar de 1964. “Estourou a revolução”, disse um colega no intervalo das meditações. Miranda, já escolado no movimento estudantil e conhecido de nomes como José Serra e Frei Betto, reagiu ao movimento de derrubada do presidente João Goulart, para espanto geral. “Isso aí não é revolução! É contrarrevolução! Estão impedindo a verdadeira revolução”.
Tempos depois, aos 24 anos, abandonou a batina porque entendeu que corria o risco de ser “uma pessoa infeliz”.
Foi viver em São Paulo e começou a trabalhar como entrevistador em uma agência de empregos. Entrou no Sesc como orientador social em 1968, por meio de concurso. Há 50 anos, migrou para a gestão de pessoal do Senac, que compõem o chamado Sistema S, ao lado de Sesc, Senai, Sesi e outras instituições administradas por federações e confederações financiadas por dinheiro recolhido pelo governo a partir da folha de pagamentos das empresas de cada setor.
No início dos anos 1980, ele se tornou frequentador assíduo e entusiasta do Sesc Pompeia e de sua programação musical inovadora, que incluía gafieiras de Paulo Moura e shows de Tim Maia e Jorge Ben Jor. No corredor aberto da antiga fábrica, cruzava com o empresário Abram Szajman, entre pessoas próximas da comunidade judaica.
Pouco depois de assumir a presidência da Federação do Comércio do Estado de São Paulo, em 1984, Szajman convidou Miranda para o cargo de diretor regional do Sesc.
Foi uma parceria feliz e duradoura. Szajman deu aval para o projeto de expansão da rede Sesc e respaldo às decisões de Miranda, que substituiria o financiamento a artistas e grupos residentes pelo modelo de fomento amplo e diverso que consagrou a história recente da instituição.
A exceção foi o desconfiado Antunes Filho, que viu seu Centro de Pesquisa Teatral, o CPT, ameaçado, mas que Miranda decidiu acolher por avaliar que o trabalho criativo e de formação de atores do diretor de teatro não sobreviveria fora da instituição.
Já a arquiteta Lina Bo Bardi, responsável pelo projeto da unidade Pompeia, o principal cartão postal do Sesc, teve de retirar seu escritório dali em 1986. Miranda enfrentou a fúria da arquiteta por causa dos vãos abertos nas torres esportivas do célebre projeto arquitetônico.
“Se a senhora não puser nada ali, vou encher de tijolo aquela trolha”, avisou Miranda, preocupado com a correria habitual de crianças, que poderiam cair pelas fendas abertas a mais de 15 metros de altura. Bo Bardi acusou a interferência e ameaçou recorrer à imprensa, mas acabou cedendo, e criou esculturas de ferro no formato de mandacarus que funcionam como guarda corpo.
Segundo Miranda, a cultura era uma ação educativa continuada, uma condição da cidadania e, portanto, não poderia estar subjugada a lógicas do mercado, pressões políticas ou caprichos de quem quer que fosse.
Habilidoso, contornava os questionamentos de um conselho conservador, formado entre o empresariado médio paulista, diante de polêmicas desencadeadas por eventos e obras de caráter transgressor ou que tangenciam temas sociais sensíveis e complexos, como racismo, direitos LGBTQIA+ e religião.
Em 2017, autorizou um esquema de segurança especial para a filósofa queer Judith Butler, referência nos estudos de gênero e alvo de protestos raivosos que queriam impedir sua palestra no Sesc Pompeia. Ao conselho, explicou que não existia essa história de ideologia de gênero como um projeto de conversão, como era colocado pelos manifestantes, sugeriu que conhecessem a obra da respeitada intelectual americana, e assunto encerrado.
Nos anos recentes, defendeu com firmeza, mas também diplomacia, o modelo de financiamento que garantiu a liberdade e o sucesso de sua gestão.
Primeiro, foi Fernando Haddad, então ministro da Educação do segundo governo de Lula, quem propôs repactuar os recursos do Sistema S para promover ações de governo. O movimento foi depois repetido pelo ministro da Economia da gestão de Jair Bolsonaro, Paulo Guedes.
Neste ano, a briga foi com o presidente da Embratur, Marcelo Freixo. Ele queria o repasse para a agência do governo de 5% dos recursos do sistema –que arrecadou mais de R$ 27 bilhões em 2022, ano em que o orçamento do Sesc foi de R$ 2,4 bilhões. “É duro brigar com quem a gente gosta”, disse Freixo durante o encontro com Miranda promovido pela ministra da Cultura, Margareth Menezes.
Durante a pandemia de coronavírus, mesmo mantendo o isolamento, Miranda recebeu diagnóstico positivo duas vezes. Diabético, ficou com a saúde debilitada depois da doença. Perdeu muito peso, e um pouco do ar bonachão, irritado com as novas limitações físicas diante de uma agenda exigente e da dificuldade de ficar longe das atividades do Sesc.
Poucos dias antes de ser hospitalizado, o diretor regional reuniu membros de sua equipe para discutir os novos projetos da instituição.
A assinatura marcante de um centralizador obstinado e os muitos anos na direção do Sesc São Paulo fizeram de Miranda a personificação da instituição que liderava, numa comunhão entre vida e trabalho que era sua velha conhecida. “Fico aqui como se fosse para a vida toda”, disse. E, assim, foi.
FERNANDA MENA / Folhapress