Morre Doris Monteiro, cantora que antecipou a bossa nova, aos 88 anos

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – “Dóris Monteiro – 65 anos de muita bossa”. O nome deste show de 2016 fala, de forma eloquente, do papel da cantora, morta nesta segunda-feira (24), como precursora do grande movimento da música brasileira no século 20.

Com sua “voz pequena”, segundo ela mesma definia, cantando coisas “mais mexidinhas”, como lhe sugerira o compositor Billy Blanco, já cantava no estilo da bossa nova em 1957, quando gravou “Mocinho Bonito”, de autoria de Blanco, a música mais tocada nas rádios brasileiras naquele ano. “O Encontro”, espetáculo com João Gilberto, Tom Jobim e Vinícius de Moraes que marcou o início da bossa nova, só aconteceria cinco anos depois.

Monteiro morreu de causas naturais, segundo um comunicado publicado no perfil da artista no Instagram. Ela tinha 88 anos e estava em sua casa no Rio de Janeiro. Ainda não foram divulgadas informações sobre o velório e o sepultamento.

A cantora estreou em 1949, aos 16 anos, na Rádio Nacional, no programa de imitações Papel Carbono, de Renato Murce. Em um tempo de vozeirões e arroubos de interpretação, o apresentador não soube sugerir uma cantora que a menina, com a sua voz peculiar, pudesse imitar. A mãe lembrou Lucienne Delyle, intérprete das delicadas canções francesas da época. Foi assim que, vencendo a competição com “Boléro”, de Pail Durand e Henru Contet, Monteiro passou de caloura a contratada pela Rádio Nacional, onde permaneceu por mais de 2 anos.

Seu primeiro disco, “Todamérica”, lançado em 1951, com a canção “Se Você Se Importasse”, de Peterpan, fez um enorme sucesso. Jairo Severiano e Zuza Homem de Mello, no livro “A Canção no Tempo” destacam a música como uma das seis mais representativas daquele ano.

Da Rádio Nacional, após uma breve passagem pela Rádio Guanabara, a cantora foi para a TV Tupi, onde permaneceu por mais sete anos. Na nova emissora, perdeu o Adelina do nome e viveu seu apogeu. Contratada pelo Copacabana Palace, cantava em francês e inglês.

Estreou no cinema em 1953, em “Agulha no Palheiro”, de Alex Viany. Faria mais sete filmes, incluindo o premiado “De Vento em Popa”, de Carlos Manga, lançado em 1957. Na TV Tupi, ganhou um programa com o seu nome. Depois, voltou para a Rádio Nacional.

Ao longo da carreira, ela gravou mais de 60 álbuns de repertório, a maioria pela Odeon, e participou em coletâneas e reedições posteriores. Alguns de seus maiores sucessos, além de “Mocinho Bonito”, foram “Mudando de Conversa”, composta por Maurício Tapajós e Hermínio de Carvalho, “Conversa de Botequim”, de Noel Rosa, e “Dó-ré-mi”, de Fernando César e Nazareno de Brito.

Nascida no Rio de Janeiro, em 23 de outubro de 1934, filha de Glória Monteiro Murta, portuguesa que trabalhava como empregada doméstica, Adelina Doris Monteiro nunca conheceu o pai biológico. Sua mãe pagava uma mulher para que cuidasse do bebê. Dona Augusta, amiga de Murta, queria que o casal Ana Maria e Lázaro Cordeiro, também portugueses, adotassem a criança, mas Ana Maria resistia.

Uma tarde, encontrando-a magrinha e desnutrida na casa onde era cuidada pela estranha, Dona Augusta pegou Monteiro, depositou a menina na cama de Ana Maria e sentenciou: “ou crias ou deixas morrer”. Ana Maria não só criou como virou folclore nos bastidores do rádio por estar o tempo todo acompanhando a filha que, ainda menina, despontava para o sucesso. “Fui eu que inseri a mãe no rádio brasileiro. Eu era a menina com uma trança do lado esquerdo e a mãe do lado direito”, costumava dizer Monteiro, rindo.

Este trecho do livro sobre a vida da cantora se encerra com a volta de Murta, a mãe biológica. Não tendo tido sucesso na tentativa de resgatá-la da mãe adotiva, mudou-se, com o marido, para a vizinhança. “Éramos todos amigos. Ela ainda me deu um irmão, e hoje tenho meus sobrinhos queridos”, dizia a cantora, referindo-se, com a maior naturalidade do mundo, à inusitada família portuguesa que reuniu a sua volta.

Seus romances seriam movimentados. O casamento, aos 18 anos, com um playboy capixaba, tendo Chacrinha como padrinho, foi capa da revista Manchete. Seis meses depois, ela estava separada. “Ele não prestava. Depois disso, tive namorados” contou em entrevista a Rodrigo Faour, em 2009.

Noticiou-se, em 1955, seu envolvimento com Alberto Bandeira, tenente da Aeronáutica, detento da penitenciária Lemos Brito, onde Monteiro fora cantar. Bandeira, condenado por um caso de homicídio no Rio de Janeiro mas posteriormente tendo a sentença revogada, teria se apaixonado pela cantora, que, embora negasse o namoro, o visitou algumas vezes na prisão.

O mais ruidoso dos seus romances, nunca confirmado por ela, ainda estava por vir. Em 1956, coroada Rainha do Rádio, a imprensa creditou sua eleição a um pretenso envolvimento amoroso com Assis Chateaubriand, que ordenara a compra intempestiva de centenas de milhares de exemplares da Revista do Rádio, que equivaliam a votos no certame.

Ruy Castro, no livro “A Noite do Meu Bem” justifica a ação de Chatô por seu interesse de que pela primeira vez a Rádio Tupi, emissora dos Associados que presidia, emplacasse uma vencedora no concurso. E acrescenta que não haveria lógica em o magnata esconder, se houvesse, um romance com uma das mulheres mais belas e desejadas da época.

Em depoimento a Maria Luisa Hupfer para o livro “As Rainhas do Rádio”, a cantora minimizou não só o papel do jornalista no episódio, como também a importância do certame: “Esse concurso não tinha o menor valor artístico”.

Monteiro não teve filhos. Na década de 1970 tornou a se casar, com o tecladista Ricardo Jr. “Ele tem um suingue espetacular, tocou com Erasmo, Maysa, Simonal”, contou a Tárik de Souza, em “Sambalanço, a Bossa que Dança”, da editora Kuarup. “Eu posso fazer a divisão que eu quiser, que ele vem na minha.”

Juntos, apresentaram-se em importantes palcos do país. Em 1990, fizeram uma turnê pelo Japão, a convite de Lisa Ono. Em 2009, Ricardo Jr. acompanhou Monteiro e Billy Blanco em um antológico reencontro dos dois precursores da bossa nova, que excursionou por capitais do país.

O casamento e a parceria artística duraram mais de 40 anos, só terminando com a morte do músico, em março de 2017. Em julho do mesmo ano, Monteiro voltou aos 83 anos, acompanhada pelo pianista João Cortez, ao palco do Beco das Garrafas, no Rio, para mais uma vez cantar, com sua voz cheia de ginga, os grandes sucessos de sua carreira.

ETEL FROTA / Folhapress

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