Morre João Donato, que uniu bossa nova e música latina e revolucionou a MPB

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Sentado ao piano, João Donato, morto aos 88 anos, nesta segunda-feira, dia 17, transcendeu a existência pela linguagem artística que criou. A vocação primeira de sua música era ser, ela mesma, uma celebração à felicidade. Pianista extraordinário e um dos maiores nomes da história da música popular brasileira, Donato legou às novas gerações da MPB o balanço da bossa e a alegria de estar aqui e agora, encantado pela natureza brasileira.

O artista estava internado com pneumonia na Casa de Saúde São José, no Humaitá, na zona sul carioca, e chegou a ser intubado há duas semanas. Ele será velado nesta terça-feira, dia 18, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, e cremado, no Memorial do Carmo, no Caju, na região central da cidade. O músico deixa a mulher, Ivone Belém, e seus três filhos, Jodel, Joana e Donatinho, de três casamentos distintos.

Transpondo a síncope para o teclado, Donato alcançou um estilo inconfundível de tocar piano. Nota por nota, fundiu as premissas estéticas da bossa nova a ritmos caribenhos, promovendo um diálogo entre a música brasileira e o mambo, a salsa e o chá-chá-chá. Entre o jazz americano e os tambores cubanos, Donato integrou o Brasil na América, reafirmando sua posição como país tropical.

Ao longo da carreira, preferiu a simplicidade como vetor criativo. Seu maior sucesso, “A Rã” aparece como “The Frog” no disco “A Bad Donato”, de 1970. Quatro anos mais tarde, a composição ganharia letra de Caetano Veloso e seria interpretada por Gal Costa em seu disco “Cantar”. No mesmo trabalho, Gal gravou “Flor de Maracujá”, criação de Donato com seu irmão caçula, Lysias Enio.

O artista havia estabelecido os alicerces de sua música em “Quem é Quem”, álbum clássico lançado em 1973. Ali, já se ouve a fusão dos ritmos latinos com o estilo cool da bossa nova em “Amazonas” (faixa gravada originalmente como “Amazon”, em “The New Sound of Brazil”, de 1965). Além da simplicidade, a música de Donato parecia soar naturalmente, sem um esforço construtivista.

Em 1975, o artista lançou o disco “Lugar Comum”, com os sucessos “Bananeira” e “Emoriô”, esta composta com Gilberto Gil. A melodia repetitiva, o suingue latino e as letras, quase monossilábicas, acentuando cada sílaba tônica, reforçavam a autossuficiência do gingado tirado do piano. Com Gil, Donato criaria ainda a canção “A Paz”, em que seu jeito de bon vivant se casava com a espiritualidade zen do músico baiano.

Em 1982, Caetano se juntou a Donato para compor “Surpresa”, incluída no álbum “Cores, Nomes”. Cinco anos depois, o pianista ainda criou “Cadê Você?”, música em parceria com Chico Buarque, presente no álbum “Francisco”.

Nascido em Rio Branco, no Acre, Donato conviveu com a música desde pequeno. Seu pai, um major da aeronáutica, tocava bandolim nas horas vagas. Sua mãe gostava de cantar, e a irmã mais velha sonhava em ser pianista. Aos 5 anos, ele recebeu um acordeão de presente. Três anos depois, compôs sua primeira música, a valsa “Nini”.

Em 1945, a família se transferiu para o Rio de Janeiro, onde Donato passou a frequentar os bailes colegiais da Tijuca. Na época, tentou ficar famoso no programa de Ary Barroso, mas nem sequer foi ouvido. Aos 17 anos, Donato namorou Dolores Duran. Como a cantora era bem mais velha, o relacionamento causou polêmica -e o afastamento do casal.

Pouco a pouco, Donato se aproximou da bossa nova. Participou dos fãs clubes Frank Sinatra-Dick Farney e Lúcio Alves-Dick Haynes. Frequentou as boates de Copacabana, e foi convidado por Tom Jobim a gravar seu primeiro disco, “Chá Dançante”, de 1956. Num primeiro momento, sua música não foi bem compreendida pelo público.

Sem sucesso no Brasil, resolveu fazer uma turnê nos Estados Unidos, aceitando um convite do violonista Nanai. Em 1959, se apresentou com a banda que acompanha Carmen Miranda, em cidades do interior, como Nevada e Lake Tahoe. Ficou sozinho e sem dinheiro em Los Angeles, chegando a ser expulso do apartamento onde morava. Foi salvo pelo baterista cubano Armando Peraza, que o ajudou a superar as dificuldades financeiras.

Donato passou a tocar com expoentes da música latina, como Johnny Martinez, Mongo Santamaria e Eddie Palmieri. Nesse momento, ele se impressionou com a riqueza da música caribenha e entendeu que estava mesmo destinado a unir o mambo à bossa nova. Tempos depois, se apresentou com João Gilberto pelo continente europeu.

De volta aos Estados Unidos, chegou a tocar com Chet Baker, expoente do cool jazz, o guitarrista Wes Montgomery e o maestro Nelson Riddle. Na época, passou a ser idolatrado até mesmo no Japão. Donato voltaria a morar no Brasil em 1972. Depois de um interlúdio dos estúdios, o artista lançou impressionantes 25 álbuns entre 1996 e 2022. No fim da vida, conseguiu renovar a popularidade entre os mais jovens, apostando num diálogo artístico com as novas gerações.

Em 2017, o balanço da bossa ganhou uma roupagem moderna no disco “Sintetizamor”, lançado em parceria com seu filho, Donatinho. Em 2021, se juntou a Jards Macalé para gravar “Síntese do Lance”, que originou os últimos shows de sua carreira. A faixa de abertura, “Côco Táxi”, que louva a vida em Cuba, mostrando a referência ao gingado autossuficiente de sua música. “Coco táxi/ Coco louco/ É nesse balanço bom que eu fico louco”.

No ano passado, Donato concebeu “Serotonina”, primeiro disco com canções inéditas em duas décadas. “A cabeça no ar/ E os pés no chão/ Na terra, mar e ar/ Imensidão/ Eu gosto mais de sim/ do que de não/ Com a paz de Oxalá/ No coração”. Para Donato, só existia o presente. Do mesmo modo, as músicas eram, autorreferentes. As letras falavam da própria música, de modo que o autor reduzia ao som tudo o que estava ao seu redor.

Nas apresentações, artista e plateia comungavam do mesmo transe, o encantamento pela natureza, “o mar, o ar, a imensidão”. Se só existia a música, esse “balanço bom que eu fico louco”, Donato encontrou, nas teclas de seu piano, a paz, morrendo numa alegria desmesurada de viver, preferindo sempre o sim ao não.

GUSTAVO ZEITEL / Folhapress

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