Morre Ney Latorraca, que marcou o teatro e a televisão com seu humor, aos 80

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Ney Latorraca, que marcou os palcos e as telas, com a verve irônica e o humor refinado, morreu, aos 80 anos, na manhã desta quinta-feira (26).

Ele estava internado, há seis dias, na Clínica São Vicente, na Gávea, zona sul do Rio de Janeiro, e foi vítima de uma sepse pulmonar, em decorrência do tratamento de um câncer de próstata. A informação foi confirmada pelo hospital.

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Antonio Ney Latorraca nasceu em Santos, no litoral paulista, em 27 de julho de 1944, e foi filho de cantores de cassino. Ele começou a atuar aos seis anos, numa radionovela da rádio Record. Fez sua estreia nos palcos em 1964 em uma encenação de “Pluft, O Fantasminha”, de Maria Clara Machado, também em Santos.

Pouco depois, Latorraca partiu para São Paulo e procurou grandes nomes do teatro dos anos 1960, como Flávio Rangel, Maria Della Costa, Cacilda Becker e Walmor Chagas. Participou de “Reportagem de um Tempo Mau”, de Plinio Marcos, mas a peça foi censurada e teve só uma encenação, no Teatro de Arena, na região central da capital paulista.

Ao longo dos anos 1960, fez pequenas participações em novelas como “Beto Rockfeller”, “Super Plá”, “Audácia, a Fúria dos Trópicos” e no teleteatro da TV Cultura, em produções como “Yerma”.

Em 1967, entrou para a Escola de Arte Dramática da USP, onde se formou em 1969 e teve Marilia Pêra como madrinha. Naquele ano, encenou “O Balcão”, de Jean Genet, dirigido por Victor Garcia. Nos anos 1970, participou, nos palcos, do musical “Hair” e de “Jesus Cristo Superstar”. Ainda no início da década, foi contratado pela TV Record, onde esteve em cinco novelas.

Em 1975, fez sua estreia na Globo, na novela “Escalada”, de Lauro César Muniz, como o playboy Felipe. No ano seguinte, viveu o rebelde Mederiquis da novela “Estúpido Cupido”. O personagem só se vestia de preto e circulava em uma lambreta batizada pelo ator de Brigitte.

Nos anos 1980, participou das novelas “Chega Mais”, “Coração Alado” e “Um Sonho a Mais” e nas minisséries “Avenida Paulista”, “Rabo de Saia”, “Anarquistas Graças a Deus”, “Memórias de um Gigolô” e “Grande Sertão: Veredas”.

No teatro, dedicou-se a “Rei Lear” em 1983 e, três anos depois, começou a participar do sucesso “O Mistério de Irma Vap”. Ao lado de Marco Nanini e sob direção de Marilia Pêra, foram onze anos ininterruptos em cartaz.

No fim dos anos 1980, Latorraca viveu um de seus personagens mais populares e marcantes: o velhinho Barbosa, de “TV Pirata”. “Quando era o Barbosa, nunca imaginei que seria aquele sucesso. Ninguém esperava que aquilo fosse funcionar como uma mudança [no humor]”, disse o ator em entrevista à Folha de S.Paulo, em 2007.

Entre suas participações no cinema, destacam-se “O Beijo no Asfalto”, “Ópera do Malandro”, “Ele, o Boto”, “Festa” e “Carlota Joaquina”.

Nos palcos, protagonizou “O Médico e o Monstro”, “Don Juan”, “Quartett” e “O Martelo. Em 2011, atuou em “A Escola do Escândalo”.

Na década de 1990, fez sucesso como o Conde Vlad de “Vamp”, contracenando com Claudia Ohanna. Antes e depois da novela, passou pelo SBT na minissérie “Brasileiras e Brasileiros” e em “Éramos Seis”. De volta à Globo, participou de “Zazá”, “O Cravo e a Rosa”, “O Beijo do Vampiro”, “Da Cor do Pecado”, “Bang Bang” e “Negócio da China”

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Certa vez, Latorraca foi convidado para apresentar a cerimônia de entrega de uma edição do Prêmio Sharp de Música. Momentos antes de entrar no palco, tentou colar um de seus dentes que havia quebrado com uma daquelas supercolas que colam tudo, até o dedo de quem a está usando.

E foi o que aconteceu com o artista. Seu dedo ficou firmemente preso ao dente, mas nem por isso o ator se desesperou. Entrou no palco como se nada tivesse acontecido, com uma parte da mão dentro da boca e a outra apoiada no queixo, posando de intelectual a refletir. Fez o que tinha para ser feito e saiu do palco sem nenhum resquício de gafe. O público achou que era mais uma de suas graças.

Entretanto, o leonino, que nasceu rotundo, com seis quilos, em 1944, “um ano antes do fim da Segunda Guerra Mundial”, em Santos, litoral de São Paulo, reinou em sua área por ter batalhado como um soldado determinado a vencer na arte de interpretar.

Dois anos depois de ter nascido, uma simples “canetada” do então presidente Eurico Gaspar Dutra (1883-1974) fez com que os pais de Latorraca perdessem o emprego. Ambos trabalhavam apresentando-se em cassinos, que foram extintos por uma lei, que proibia os jogos de azar no Brasil sob o argumento de que eram degradantes para o ser humano. Degradante, no entanto, ficou a situação financeira da família.

O pai do ator, Alfredo, era crooner, e a mãe, Nena, corista. Os dois escolheram o ator Grande Otelo para ser o padrinho de batismo de Latorraca.

O ator contava que vivia em pensões e que seus pais nunca puderam dar a ele gibis ou brinquedos. “Meus pais eram pobres e deixavam isso claro. Não tinha essa de ficar magoado. Eu brincava com uma caixa de charutos e achava o máximo. Me sentia parte de um trio interessante e diferente”, falou o artista para a coluna da jornalista Mônica Bergamo, da Folha de S.Paulo, em 24 de setembro de 2017. Ainda em Santos, o artista ajudava os pais com o “dinheirinho” arrecadado com a entrega de marmitas no Instituto de Educação Canadá, escola onde estudou e repetiu de série três vezes por conta da matemática.

Para se manter enquanto estudava e participava da montagem de algumas peças, o ator trabalhou em uma boutique feminina, além de ter sido funcionário em uma agência bancária.

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Latorraca sempre se dedicou a atuar no teatro e TV ao mesmo tempo. O primeiro trabalho do ator na televisão foi como figurante na extinta TV Tupi. As novelas “Beto Rockfeller” (1968) e “Super Plá” (1969) contaram com a participação do artista.

No auge do movimento hippie no Brasil, na década de 1970, o artista atuou nas montagens teatrais de “Hair” e “Jesus Cristo Superstar” , entre outras. Na TV, por indicação da atriz Lilian Lemmertz, o ator foi contratado pela Record para participar de novelas.

Latorraca ingressou na TV Globo para fazer parte do elenco das novelas “Escalada” e “Estúpido Cupido”, que lhe renderam notoriedade. Daí em diante, virou ator consagrado, com participação garantida em diversos folhetins. Em “Um Sonho a Mais”, assegurou sua versatilidade ao interpretar cinco personagens diferentes, entre eles uma mulher, Anabela Freire, figura de grande sucesso na trama.

Segundo revelava em entrevistas, seu comprometimento com o trabalho gerava uma ansiedade, que era controlada por meio de um concentrado trabalho de preparação, antes de gravar uma cena em estúdio ou interpretá-la no palco.

“Antes de dormir, deixo a roupa que irei vestir no dia seguinte em uma cadeira. Quando me levanto, visto a roupa e o personagem que tenho de interpretar”, dizia o ator, que reconhecia a importância de trabalhar em equipe e fazia questão de passar o texto com os colegas antes de ouvir a palavra “ação”.

Latorraca contava que “a turma toda” deveria estar sempre afiada com ele em um trabalho, desde o motorista que o apanhava em casa. “Pego o texto das mãos dele [motorista], marco, converso com o diretor batendo as cenas e amo gravar o ensaio, porque o primeiro sentimento é o mais autêntico”, dizia.

Para desempenhar personagens tão marcantes, o ator dizia trabalhar primeiro com sua intuição, antes de ler o texto ou saber de qualquer informação vinda do diretor ou autor. O nome do personagem já indicava como ele deveria ser.

Quanto a seu próprio nome, o artista costumava brincar que era Antônio Ney Latorraca e não “Neila”, como alguns desavisados o chamavam nas ruas. “Quando me chamam de ‘seu Neila’, envelheço 200 anos”, disse aos risos ao participar do programa de Jô Soares certa vez.

No teatro, integrou, em 1984, com o ator, diretor e produtor teatral Marco Nanini o grande sucesso “O Mistério de Irma Vap”, que teve produção de Marília Pêra. A peça permaneceu nos palcos cerca de 11 anos, entrando para o “Guinness Book of Records” em 2003 como a peça em cartaz por mais tempo no Brasil. Em 2006, a história foi adaptada para o cinema.

Em 1990, o ator se desligou da Rede Globo para trabalhar na novela “Brasileiras e Brasileiros”, produzida pelo SBT. Em 1991, de volta à Globo, o artista fez grande sucesso no papel de Conde Vlad, chefe dos vampiros da novela “Vamp”, antes de retornar ao SBT para fazer o remake da novela “Éramos Seis”, transmitida três anos mais tarde.

Mesmo com um intenso trabalho na TV, Latorraca nunca abandonou o teatro. Ele participou de vários espetáculos, entre os quais estão “O Médico e o Monstro” e “Don Juan”, sucessos absolutos de público e bilheteria, na década de 1990.

Antes de entrar em cena, Latorraca não deixava de cumprir um ritual: pedia sempre proteção à mãe, que, segundo ele, sempre estava a seu lado. Quando perdeu a amiga Marília Pêra, de quem sentia falta, passou a invocá-la também antes da ação. “Falávamos todo dia”, comentava.

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Além da participação na primeira montagem brasileira de “Hair”, com Antônio Fagundes e Sonia Braga no elenco, dividiu o palco com seu padrinho, Grande Otelo, no musical “Lola Moreno”, em 1979.

Aos 73 anos, Ney Latorraca, ao lado da atriz Claudia Ohana, estreou no início de 2017, no Rio, o musical “Vamp”, adaptação da novela da Globo de 1991, retomando o mesmo personagem para a alegria dos muitos fãs. O espetáculo também foi montando em São Paulo, repetindo o sucesso.

Foi nessa ocasião que Latorraca anunciou sua aposentaria dos palcos, mas logo em seguida a desmentiu por meio da coluna da jornalista Mônica Bergamo, na Folha de S.Paulo, no dia 24 de setembro de 2017: “Foi uma frase de efeito, para chamar a atenção. Para o foco brilhar em mim. Para as pessoas me perguntarem justamente sobre isso”, disse o ator.

Latorraca gostava de atenção e reconhecimento. “Viver é muito intenso. Falar é intenso, pagar boleto é intenso. Não consigo ficar só contemplando”, dizia. “Representar é uma grande trepada. Talvez a melhor de todas. Porque tem o aplauso no fim. É o que me mantém, me dá tesão, é o aplauso. Eu adoro.”

A complicação que enfrentou por causa de uma cirurgia na vesícula, em 2012, foi “um divisor de águas” para o ator. “Todo mundo achava que eu ia morrer. Mas voltei. Poucas pessoas têm essa segunda vida”, contou o ator em entrevista, dizendo que havia parado de fumar há 14 anos e que não bebia mais.

Latorraca também afirmava não ter medo da solidão. “Da morte, sim. Ela vai tirar de mim as coisas que eu tenho e que são lindas”, afirmou o ator, morto nesta quinta (26), que pretendia deixar seu patrimônio para quatro instituições de amparo a artistas e a doentes. Ele deixa o marido Edi Botelho, com quem foi casado por 30 anos.

CARLOS BOZZO JUNIOR E ALEXANDRA MORAES / Folhapress

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