SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Mario Jorge Lobo Zagallo era um supersticioso: sua relação com o número 13, intensa, celebrizou-o. Julgava-se um homem de sorte, a qual considerava uma aliada e que, tinha certeza, agiu para que ele iniciasse, em 1958, a caminhada que o tornaria o maior campeão das Copas do Mundo de futebol.
O ícone do esporte mundial morreu na madrugada deste sábado (6), aos 92 anos. A informação foi confirmada em uma nota publicada nas redes sociais do ex-jogador.
“É com enorme pesar que informamos o falecimento de nosso eterno tetracampeão mundial Mario Jorge Lobo Zagallo. Um pai devotado, avô amoroso, sogro carinhoso, amigo fiel, profissional vitorioso e um grande ser humano. Ídolo gigante. Um patriota que nos deixa um legado de grandes conquistas. Agradecemos a Deus pelo tempo que pudemos conviver com você e pedimos ao Pai que encontremos conforto nas boas lembranças e no grande exemplo que você nos deixa”, diz o texto.
Ele estava internado no hospital Barra DOr desde 26 de dezembro. Segundo a unidade médica, Zagallo morreu por falência múltipla de órgãos isto é, quando dois ou mais órgãos param de funcionar.
Zagallo conquistou quatro vezes a principal competição mundial entre seleções, disputada desde 1930: duas como jogador (Suécia-1958 e Chile-1962), uma como treinador (México-1970) e uma como auxiliar técnico (EUA-1994).
Além dele, somente o alemão Franz Beckenbauer (Alemanha-1974 e Itália-1990) e o francês Didier Deschamps (França-1998 e Rússia-2018) ganharam a Copa como jogador e técnico.
O jogador Zagallo vestiu 37 vezes a camisa da seleção brasileira (com 30 vitórias, quatro empates e três derrotas) e marcou quatro gols. Como técnico do Brasil, foram 154 partidas (110 vitórias, 33 empates, 11 derrotas e a famosa frase “Vocês vão ter que me engolir!”). Os dados são da Fifa.
Nos clubes, em 35 anos de carreira, dirigiu, entre outros, Botafogo, Vasco, Fluminense e Portuguesa. Encerrou a trajetória de treinador em 2001, no Flamengo.
Zagallo nasceu em Maceió (AL), só que logo a família mudou-se para o Rio, onde foi criado. Seu primeiro clube foi o América, do qual era sócio. Defendeu a cor vermelha da agremiação nas equipes de base de futebol e de tênis de mesa, modalidade em que tinha habilidade acima da média.
Passou a atuar pelo Flamengo no início dos anos 1950, e lá seu futebol aflorou, sob o comando do técnico paraguaio Fleitas Solich. Pelo time rubro-negro, sagrou-se tricampeão estadual (1953-1955). À época, dividia-se entre o esporte e os estudos. Formou-se técnico em contabilidade.
Em 1958, foi pré-convocado para a Copa da Suécia não havia defendido a seleção antes desse ano. Tinha a dura concorrência de Pepe, dono de potente chute, e de Canhoteiro, exímio driblador.
Para Zagallo, seu inovador estilo tático, que o distinguia dos pontas-esquerdas tradicionais, foi um trunfo que contribuiu para que ficasse com uma vaga.
Diferentemente dos colegas de posição, ele recuava para auxiliar na marcação quando o time não tinha a posse da bola. Considerava-se um jogador-maratonista, pois corria e se movimentava do apito inicial ao final.
Forma peculiar de jogar que, contudo, não lhe tirava o papel de azarão. Sendo assim, contou com o circunstancial para figurar entre os 22 da seleção.
Relata que problemas bucais, “de gengiva, de dente”, impediram tanto Pepe quanto Canhoteiro de enfrentar o Paraguai, no Maracanã, em maio, a um mês da Copa. “Ganhei essa grande oportunidade. Fui escalado, fiz dois gols, ganhamos de 5 a 1. Foi a minha sorte.”
Convenceu Vicente Feola, e o treinador cortou Canhoteiro, que vivia fase irregular e, além disso, era considerado baladeiro.
Zagallo falou em sorte para ir à sua primeira Copa. Pois, para estar entre os 11 da seleção, foi novamente agraciado por ela.
Pepe, em grande forma, foi vítima de uma jogada violenta em amistoso na Itália, pouco antes do embarque para a Suécia, que o deixaria fora de ação para a primeira fase do Mundial.
Nos gramados suecos, vestindo a camisa 7, Zagallo jogou do primeiro ao último minuto dos seis jogos da inédita conquista. Fez um gol nesse Mundial, o quarto do Brasil na final contra os anfitriões (5 a 2).
Campeão do mundo ao lado de Pelé, Garrincha, Didi, Gilmar e companhia, Zagallo, cujo vínculo contratual com o Flamengo se encerrara, teve em mãos uma oferta milionária do Palmeiras. Recusou porque sua mulher, Alcina, funcionária pública, não podia ser transferida para São Paulo. Transferiu-se então para o Botafogo, cuja proposta salarial era superior à da equipe da Gávea.
Valorizado, prosseguiu prestigiado na seleção e foi novamente titular no Mundial seguinte. Pepe, mais uma vez, assistiu do banco de reservas a uma Copa.
No Chile, Zagallo fez o primeiro gol da seleção de Aymoré Moreira na partida de estreia do Brasil, 2 a 0 no México. Como na Suécia, atuou todo o tempo em todas as seis partidas, dessa vez com a camisa 21, faturando o bi na final contra a Tchecoslováquia (3 a 1).
Zagallo jogou até 1965, quando pendurou as chuteiras. Decidiu continuar próximo das quatro linhas e assumiu o cargo de técnico do Botafogo, obtendo sucesso quase imediato, com as conquistas dos Estaduais de 1967 e 1968 e da Taça Brasil de 1968.
A MAIOR CONQUISTA
Em março de 1970, foi chamado para substituir o polêmico e pouco subserviente João Saldanha no comando da seleção brasileira que disputaria, menos de três meses depois, a Copa do México.
Tinha nas mãos uma equipe recheada de craques (Pelé, Carlos Alberto, Tostão, Rivellino, Jairzinho, Gerson, Clodoaldo, Piazza, Paulo Cézar Caju) e mostrou capacidade para fazê-la funcionar. À sua maneira.
Tanto que Edu, ponta-esquerda “endiabrado”, superofensivo e driblador, não teve mais chance. Rivellino, meia, atuou como falso ponta, reforçando o poder de marcação da seleção quando o adversário tinha a bola. Outra mudança foi recuar Piazza para a zaga, a fim de que ele e outro excepcional volante, Clodoaldo, pudessem ser titulares.
“O Zagallo conseguiu colocar em prática o time jogar em bloco. Quando saía para o ataque, a defesa saía junto com o meio-campo, e o meio-campo, junto com o ataque. Quando os adversários tinham a posse de bola, a mesma coisa: ataque-meio de campo, meio de campo-defesa”, comentou Carlos Alberto (1944-2016), o Capitão do Tri, elogiando a formação tática daquela seleção.
Zagallo dirigiu um dos melhores times da história. Foram seis jogos e seis vitórias, com um futebol de primeiríssima classe e a conquista definitiva da Taça Jules Rimet após o 4 a 1 na decisão contra a Itália.
“Fizemos uma Copa sensacional, e o mundo inteiro gostou daquilo que o Brasil realizou no México”, declarava ele, orgulhoso. Sempre considerou esse título a maior conquista de sua carreira.
Quatro anos mais tarde, em 1974, sofreu seu primeiro revés de proporções mundiais como treinador. Já sem Pelé e Tostão no ataque e sem Gerson na criação, o Brasil falhou ao tentar o tetra na Copa da Alemanha. Não empolgou no decorrer do torneio e foi dominado pelo emergente Carrossel Holandês no jogo que valia vaga na final: 2 a 0.
Zagallo admitiu a superioridade da Holanda, a quem tinha subestimado antes do confronto. “Perdemos para a melhor estrutura tática que vi na minha vida.” A seleção terminou em quarto lugar.
Curiosamente, o tetra do Brasil só veio quando ele retornou à seleção, como auxiliar técnico de Carlos Alberto Parreira, na Copa dos EUA, em 1994. Antes, de 1978 a 1990, com Cláudio Coutinho, Telê Santana (duas vezes) e Sebastião Lazaroni, a seleção viu de longe a Taça Fifa.
Zagallo e Parreira construíram uma relação próxima ao longo das décadas de 1970 e 1980. Na Copa do México-70, Parreira foi preparador físico e espião da seleção de Zagallo.
O mundo árabe também fortaleceu os laços entre os dois, pois ambos conviveram no Oriente Médio e treinaram seleções da região. “Éramos verdadeiros irmãos”, dizia Zagallo.
Teórico do futebol, Parreira montou uma seleção pragmática e pouco criativa para os EUA-94, dependente dos gols de Romário, e Zagallo funcionou como um incansável motivador na campanha.
“Faltam quatro! Faltam três! Faltam dois!”, afirmava ele, ao término de cada jogo do Brasil, em uma espécie de contagem regressiva para o título.
Parreira saiu depois da conquista (nos pênaltis, após um 0 a 0 com a Itália), e Zagallo herdou a posição. Nesse novo ciclo com a seleção, foi muito contestado por seus críticos, que o consideravam ultrapassado e cada vez mais adepto de um futebol defensivo.
Os clamores por sua saída tornaram-se mais constantes depois da Olimpíada de Atlanta (EUA), em 1996. A semifinal foi trágica: com 3 a 1 a favor, a seleção permitiu o empate da Nigéria, que venceu na prorrogação, na “morte súbita”.
Esse dia foi considerado por Zagallo o mais doloroso de sua história na seleção. “Ficou engasgado. O jogo estava ganho.” A equipe que buscava o inédito ouro olímpico voltou para casa com o bronze.
GOELA ABAIXO
O alívio para o treinador veio somente na Copa América de 1997, na Bolívia. Alívio na forma de ataque.
Campeão ao superar a seleção anfitriã, Zagallo, ainda em campo e exasperado, soltou aos microfones da TV Globo a célebre frase: “Vocês vão ter que me engolir!!!”. Segundo ele, direcionada a dois jornalistas da mídia impressa de São Paulo que faziam campanha para derrubá-lo.
Desse modo, e ainda mais fortalecidos por outro título em 1997 (o da Copa das Confederações), Zagallo e sua seleção chegaram prestigiados à Copa da França, em 1998.
Ronaldo Fenômeno, então ainda chamado de Ronaldinho, vivia fase áurea, com o faro artilheiro apuradíssimo. Havia favoritismo, confirmado com a ida à final.
Ironia, foi Ronaldo, a estrela mais cintilante do time, o responsável pelo abatimento de um elenco que, segundo Zagallo, vivia uma “felicidade total” após eliminar a Holanda, nos pênaltis, na semifinal. “Aí aconteceu aquele desastre e abalou todo o time.”
Horas antes da decisão contra os anfitriões, o atacante sofreu uma crise nervosa na concentração e teve de ser levado para atendimento em uma clínica. Zagallo chegou a escalar Edmundo, mas voltou atrás quando Ronaldo apareceu no vestiário.
“O Ronaldo chegou quase em cima da hora e já veio com meia, calção… pronto para jogar: ‘Zagallo, não me tira dessa. Pelo amor de Deus, não me deixe de fora’.” Foi atendido.
Só que nem Ronaldo nem o Brasil se acharam e tiveram uma atuação pífia. França, Zidane à frente, campeã fácil, 3 a 0.
O mesmo Zidane esteve em campo no jogo que encerrou a participação de Zagallo em Copas do Mundo. Na Alemanha-2006, nas quartas de final, o craque francês teve atuação portentosa no 1 a 0, gol de Henry, que eliminou o Brasil.
Nesse Mundial, como coordenador técnico, Zagallo havia retomado a parceria com Parreira, que reassumira a seleção na tentativa do hexa o penta viera quatro anos antes.
Perto de completar 75 anos, não se mostrou tão ativo. Estava mais magro e menos vigoroso, efeito da cirurgia a que foi submetido em 2005 para a retirada de um tumor no duodeno. No procedimento, a vesícula e parte do estômago também foram extraídos.
Pós-Copa de 2006, Zagallo levou uma vida não muito agitada. Passou a disputar partidas de bocha com alguns vizinhos depois de aposentar o tênis, um de seus principais hobbies.
Avesso às novas tecnologias (“Tenho email, mas não mexo. Fico numa preguiça…”, dizia), ia com certa frequência ao cinema, ao teatro e a restaurantes, acompanhado de Alcina (para ele, Nininha, morta em 2012), com quem se casara em 1955. Teve com ela quatro filhos.
Foi a companheira, aliás, que o fez criar gosto pelo 13. A explicação vem da devoção a santo Antônio, cujo dia é festejado em 13 de junho. Gosto que virou fixação.
Zagallo, que costumava andar com uma medalhinha do santo no bolso, buscava formar frases que continham 13 letras, como “Brasil campeão”, morava no 13° andar de um condomínio na Barra da Tijuca e até o final do número de seu telefone celular era 13.
Porém ele nunca vestiu a camisa 13 quando jogador. Só veio a usá-la ao iniciar a carreira de técnico, com a equipe juvenil do Botafogo. E sempre teve a convicção de que esse número às costas ajudou-o a engrenar na função.
No ano de seu octogésimo aniversário, Zagallo foi homenageado por Botafogo e Flamengo. Voltou brevemente aos holofotes e fez questão de afirmar que acompanhava todas as partidas da “Amarelinha”, como carinhosamente se referia à seleção, e que estava “atento a tudo”.
Tinha, no fundo, a esperança de voltar à ativa. De ser chamado pela CBF para, com sua experiência, estrela e carisma, ajudar o Brasil a triunfar na Copa de 2014. Mas não aconteceu dessa vez, não era sua sorte, seu destino.
LUÍS CURRO / Folhapress