SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Maior nome da dramaturgia nacional e criador da linguagem tropicalista no teatro, José Celso Martinez Corrêa, o Zé Celso, que encenou a folia, a orgia e a anarquia no Teatro Oficina, morreu nesta quinta-feira (6), aos 86 anos, em São Paulo.
Ele estava internado na unidade de terapia intensiva do Hospital das Clínicas depois de ter tido 53% de seu corpo queimado em um incêndio causado por um aquecedor elétrico que consumiu seu apartamento, no Paraíso, bairro da zona sul paulistana, durante a madrugada de terça-feira (4).
Nos anos 1960, Zé Celso escolheu a anarquia oswaldiana para desafiar a repressão da ditadura militar. O artista participou do grupo fundador do Teatro Oficina também formado por Renato Borghi, Fauzi Arap, Etty Fraser, Amir Haddad e Ronaldo Daniel, que se tornaria símbolo do teatro brasileiro.
Dez anos mais tarde, a companhia montou “O Rei da Vela”, clássico inspirado no livro de mesmo nome escrito em 1933 por Oswald de Andrade, que satirizou a política e o comportamento subserviente do país em relação ao mundo desenvolvido.
Sob a direção de Zé Celso, os atores Othon Bastos, Etty Fraser e Dina Staf ironizaram os filmes da Atlântida, as comédias de costume e o tom empolado das óperas. Em “O Rei da Vela”, Abelardo, um agiota, enriquece endividando os outros e acaba trapaceado por um sujeito ainda mais sem caráter.
Zé Celso consolidava então os alicerces do Oficina, indo ao centro da linguagem dramatúrgica. Pensador do teatro, ele resgatava o conceito da antropofagia modernista. Mastigava e deglutia a cultura estrangeira, servindo ao público um banquete tropicalista. Assim, rompia com o estilo europeizado do Teatro Brasileiro de Comédia, o TBC, atribuindo sentido à arte teatral brasileira da segunda metade do século 20.
Assim, Zé Celso substituiu o bom gosto pela verdade. Profundo conhecedor do método do russo Constantin Stanislavski, operou uma mudança determinante na atuação brasileira. As peças não seriam compostas por uma sucessão de falas justapostas, mas por um permanente diálogo entre o elenco e a plateia.
Tal mudança impôs um novo significado para o espaço cênico. Ao modo de uma ágora, Zé Celso se voltava à essência do teatro, num jogo entre performance e catarse. Já não era mais interessante a representação, mas a convivência em cena de múltiplas linguagens.
Em suas peças, o diretor buscou desregular o moralismo conservador, com a nudez e a escatologia. A transgressão era, simbolicamente, uma agressão à ordem vigente, o que se tornou elemento constitutivo da poética do Oficina.
Regido por Dioniso, deus grego do teatro, ele concebeu a encenação como um ritual, encontrando o profano dentro do sagrado. Ancorado na contracultura em voga nos anos 1960, almejava o transe em vez do sublime.
O segundo ato de “O Rei da Vela”, por exemplo, é caracterizado pela liberdade sexual. O diretor adotaria o mesmo estilo de vida, tendo interesse por todas as formas de amor e experimentando o barato criativo das drogas. Ele voltaria a desafiar a ditadura em 1968, quando estreou no Rio de Janeiro “Roda Viva”, uma composição de Chico Buarque.
Com Marília Pêra e Antônio Pedro nos papéis principais, a peça criticava a sociedade de consumo no drama de um cantor que decide mudar de nome, manipulado pelos desígnios da indústria cultural. O Ato Institucional nº5, o AI-5, havia acabado de ser promulgado, e a repressão do regime militar reforçou a perseguição e a censura aos artistas.
Numa apresentação no Teatro Ruth Escobar, em São Paulo, vinte integrantes do Comando de Caça aos Comunistas, o CCC, invadiram a sala de espetáculos, agrediram os artistas e destruíram o cenário. Depois de uma sessão em Porto Alegre, “Roda Viva” foi censurada em definitivo.
Em 1974, Zé Celso foi preso numa solitária e torturado. Sem condições de trabalho no Brasil, o artista se exilou em Portugal, onde montou “Galileu Galilei”, espetáculo inspirado na teoria do dramaturgo alemão Bertold Brecht. Em 2010, Zé Celso foi anistiado pelo Estado brasileiro, recebendo também uma indenização de R$ 570 mil.
Nascido em Araraquara, no interior de São Paulo, Zé Celso estudou para ser advogado na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco. No Centro Acadêmico 11 de Agosto, integrou o grupo de jovens que formaria o Teatro Oficina em sua fase amadora. Na época, escreveu os textos “Vento Forte para Papagaio Subir”, de 1958, e “A Incubadeira”, de 1959, ambos dirigidos por Amir Haddad.
Na virada da década, o grupo se profissionalizou. Em 1963, encenou “Pequenos Burgueses”, do russo Máximo Gorki, com Rosamaria Murtinho e Tarcísio Meira. Na peça, Zé Celso traçava um paralelo entre a vida na Rússia pré-Revolucionária e o Brasil às vésperas do golpe militar.
Dois anos antes, a companhia havia adquirido a sede da rua Jaceguai, no Bixiga, com projeto do arquiteto Joaquim Guedes. A sala de espetáculos já tinha então uma estrutura pouco usual. Duas arquibancadas se defrontavam, deixando no meio o espaço vazio onde acontecia a encenação.
O diretor inaugurou o espaço, montando a peça “A Vida Impressa de Dólar”, de Clifford Odets. Em 1966, um incêndio destruiu o edifício do Oficina, que foi reformado em seguida. Em 1991, Lina Bo Bardi radicalizaria a proposta da companhia em um novo projeto arquitetônico.
Com uma estrutura horizontal, a plateia se senta no alto de andaimes de frente para uma parede envidraçada. O plano aberto se tornou idôneo para os acontecimentos orgásticos do Oficina. Em 2015, o jornal britânico The Guardian considerou o prédio como o melhor projeto arquitetônico do mundo.
Ao longo do tempo, o Oficina se tornou um centro de estudos da dramaturgia brasileira. No teatro, foram formados atores como Bete Coelho, Leona Cavalli e Esther Góes. Por ali, passaram também Augusto Boal, Fernanda Montenegro, Marieta Severo e Zezé Motta.
Nos anos 1980, Zé Celso se dedicou à pesquisa teatral e ofereceu cursos no Oficina. Em 1991, atuou, ao lado de Raul Cortez, em “As Boas”, clássico do francês Jean Genet.
No cinema, Zé Celso assinou o roteiro de “Prata Palomares”, de 1972, atuou em “Um Homem Célebre”, dois anos depois, e dirigiu o curta-metragem “O Parto”, em 1975. No ano de 2015, voltou a atuar, no filme “Ralé”, ao lado de Helena Ignez. Seu maior êxito no cinema foi a adaptação de “O Rei da Vela”, que arrematou os prêmios de melhor montagem e de melhor trilha sonora do Festival de Gramado.
Durante quatro décadas, o artista brigou na Justiça com Silvio Santos. O apresentador e dono do SBT, que era proprietário do terreno, pretendia construir ali um conjunto residencial de três torres, cada uma com cem metros de altura. Já o artista brigava para que fosse construído um parque público no local.
Zé Celso deixa o marido, Marcelo Drummond, ator do Oficina, com quem viveu durante 37 anos. Num prólogo da tragédia, os dois se casaram, no mês passado, na sede do teatro. Zé Celso apresentava o seu derradeiro ato, um espetáculo festejado pela classe artística, bacantes que comungavam juntos o amor, o humor e um revolucionário do teatro brasileiro.
GUSTAVO ZEITEL / Folhapress