Mostra com peças milenares contam a história de povo pré-romano desconhecido

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Uma cabeça de mulher adornada com brincos e uma tiara que prende seus cabelos ruivos sobre os quais emerge surpreendentemente outra figura feminina, porém a segunda se revela de corpo inteiro coberto por um vestido longo, drapeado e colorido.

A descrição de um corpo feminino que brota do cérebro de uma mulher poderia insinuar que se tratasse de uma representação surrealista moderna, mas diz respeito a um vaso de cerâmica do século 4 ou 3 a.C. Alguns objetos com essas características são encontrados na mostra “Formas e Cores da Itália Pré-Romana”, em exibição na sede paulistana do Instituto Italiano de Cultura.

Os artefatos são oriundos de um povo da Antiguidade na Península Itálica que não compunham a sociedade romana, tampouco eram colonos gregos. A exposição desvela a refinada cultura dos daunis por meio dos vestígios encontrados em sítios arqueológicos da cidade de Canosa di Puglia.

Pouco conhecidos, os daunis ocupavam uma pequena parte da região italiana da Apúlia entre os séculos 7 e 2 a.C. Organizada pelo arqueólogo Luca Mercuri e por Massimo Osanna, diretor geral dos museus do Ministério da Cultura da Itália, a exposição apresenta dezenas de objetos como estátuas, urnas ritualísticas, armaduras masculinas e objetos íntimos femininos, como um porta-joias, instrumentos de cosmética e recipientes de perfumes.

Lillo Teodoro Guarneri, diretor do Instituto Italiano de Cultura em São Paulo, afirma que “a mostra apresenta bens nem mesmo expostos ao público na Itália, uma vez que estão temporariamente guardados em reservas técnicas, como a do museu de Canosa di Puglia, atualmente em obras de expansão.” A exposição passou por Santiago e Buenos Aires, antes de chegar a São Paulo.

Considerável parcela dos vasos expostos destinava-se a cerimônias fúnebres. O tema da morte era central durante as vidas dos daunis -objetos ricamente ornamentados eram feitos especialmente para os ritos de passagem, talvez como modo de imortalizar a presença terrena de seu concidadão falecido, talvez como oferenda aos seus deuses.

As representações estatuárias são indícios do papel conferido às mulheres nesses funerais, possivelmente procissões comunitárias onde elas externalizavam compadecimento e mesmo desespero. Reconhecemos as figuras nos condoendo nas expressões e no gestual das cerâmicas que eternizaram as mulheres dauni.

Várias das urnas são resultantes de operações de assemblagem. Além do corpo feminino que aflora da cabeça de outra senhora, encontramos vasos sobre os quais se adiciona uma profusão de pequenas alegorias de cavalos, de figuras com asas e de rostos angelicais que antecipam os “putti” barrocos em mais de um milênio. A hierarquia das proporções dos ornamentos representando torsos equinos e alados remete a altares com santos católicos ou mesmo a carros alegóricos de escolas de samba.

Na exposição, os objetos incitam os visitantes ao exercício da busca por analogias com obras de arte e coisas banais de tempos bem mais recentes. A mostra “Formas e Cores” permite a reflexão sobre as características do antigo povo dauni, que foram apropriadas pelos romanos e se perpetuaram com o classicismo ao longo de diferentes períodos históricos.

Portanto, a plástica e as técnicas dos daunis se anunciam quase como um novo dado na genealogia da estética ocidental. Ao mesmo tempo, uma parcela das peças em exposição demonstra a influência da cultura grega -os daunis eram vizinhos da Magna Grécia, a região ao sul da península Itálica e da ilha da Sicília sob a colonização helênica.

Reconhecemos o influxo cultural grego em um conjunto de ânforas e jarros com cerâmica em fundo preto, dos quais sobressaem representações humanas bidimensionais e padronagens repletas de meandros.

É a comprovação de que os Dauni não eram um povo isolado -eles tinham sua identidade própria e suas particularidades, contudo também receberam estímulos externos que transformaram sua cultura material. Ao fim e ao cabo, isso demonstra que os fluxos e contrafluxos sociais não são exclusividade da modernidade ou da globalização, mas acompanham a existência humana desde tempos imemoriais.

Os mais de dois milênios que nos separam dos daunis fazem com que não mais possamos decifrar completamente os significados originais das simbologias contidas em ornatos dos vasos e urnas. Por um lado, isso confere uma aura de mistério insondável -tal como as “testa di moro” da Sicília, que decoravam o resort onde se passou a segunda temporada da série White Lotus.

Por outro lado, a ausência de uma resposta unívoca e peremptória sobre a significação daquelas figuras ornamentais nos objetos dos daunis permite ao público latino-americano formular leituras com rara liberdade.

Até mesmo interpretações diferentes das que um pesquisador ou um visitante europeu faria na Apúlia.

FRANCESCO PERROTTA-BOSCH / Folhapress

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