SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há mais de uma década a paisagem de São Paulo está diferente. Quem passa pelo Copan, se decepciona pelo fato o icônico edifício estar coberto por uma rede azul – proteção que impede a queda das pastilhas que esperam restauro. Quem mora no prédio assinado por Niemeyer, vivencia diariamente uma vista geometrizada: o mar cinza de construções que se sobrepõem pela cidade ganhou uma camada vazada quadriculada que lembra o gradil de um portão, que interrompe perspectivas e fluxos, ou um tabuleiro de xadrez.
São as diferentes possibilidades formais e interpretações dos padrões geométricos que despertam o interesse do artista colombiano Oscar Murillo, protagonista da exposição “Xeque-mate(s)”, que abre sábado, dia 31 de agosto, na Casa SP-Arte. Idealizada pelo curador Mark Godfrey, a mostra coloca o trabalho de Murillo em diálogo com outros artistas que exploram a ideia de grades.
“Há cerca de 10 anos, Murillo começou a reciclar fragmentos de pinturas descartadas e inacabadas para criar composições geométricas. Mas o interesse dele nunca foi matemático. Olhamos os grids da História da Arte e criamos rimas visuais com suas obras propondo outras discussões, como a experiência urbana nas cidades da América Latina, a reciclagem, a concepção do jogo, a relação com o corpo e a sensualidade”, explica o curador que reuniu trabalhos que conectam as estruturas criadas por Murillo com diversas facetas da abstração geométrica de diferentes tempos e geografias – sempre influenciadas pela racionalidade do Construtivismo e pelas linhas da arquitetura e design modernos, mas nunca passivas ao discurso etnocêntrico de linguagem universal. A própria geometria é desconstruída na maioria dos trabalhos como um gesto de enfrentamento.
Ao observar o cenário das cidades, encontramos as linhas sugeridas pelo colombiano e outros artistas da mostra. A tela que enquadra a vista do Copan atravessa as lentes da italiana Elisa Sighicelli. E, enquanto ela usa a proteção das pastilhas para propor uma reflexão sobre a ruptura da ideia de perfeição da grade modernista abstrata, mostrando como a realidade interrompe o projeto inacabado do Modernismo, Damian Ortega usa o revestimento de um edifício da década de 1960 para criar uma de suas máscaras. Já o flanêur Geraldo de Barros traduz a malha urbana em fotos que revelam sombras e formas em movimento.
Dinamismo é, aliás, a palavra de ordem aqui. Conhecido por criar abstrações expressivas carregadas de fisicalidade, Murillo prima explorar textura e sensualidade, sobre precisão e racionalidade, quando investiga a pintura geométrica. Não à toa, ele destaca o legado dos neoconcretos brasileiros. Não poderiam faltar, então, as geometrias dançantes de Hélio Oiticica, Lygia Pape e Lygia Clark que conversam, aqui, com os arranjos de objetos criados pelo brasileiro Antonio Tarsis, cuja escolha de diferentes superfícies ajuda a criar deslocamentos ópticos, e pelo mexicano Abraham Cruzvillegas.
Conhecido por trabalhar com itens encontrados e materiais acessíveis, Cruzvillegas apresenta ideias de improvisação e jogo que também instigam Murillo. Em “Xeque-mate(s)”, o mexicano apresenta um de seus “Blind self-portrait”, instalações compostas por um fluxo de folhetos, recortes de jornal, fotografias, cartões postais, envelopes, ingressos, vouchers, cartas, pôsteres, flyers, cartões, guardanapos, entre outros, pintados com tinta acrílica. Num processo parecido, Murillo cria retratos de sua própria obra a partir dos rastros de si quando costura, em padrões quadriculados, os descartes e sobras de pinturas anteriores.
Ambos atualizam o conceito de ready made de Duchamp acrescentando aos trabalhos camadas de afeto e de narrativas íntimas, assim como o faz Sonia Gomes. Notória por criar estruturas tramadas a partir de objetos que ganha de amigos e fãs, Gomes expõe “Lágrima II”, um grid que não aceita a rigidez do pensamento moderno, mas abre espaços orgânicos, tensões e nós, seguindo, de certa forma, a mesma estratégia de rebeldia da tela fotografada por Sighicelli. É possível, ainda, estabelecer uma ligação direta entre os trabalhos da brasileira e da italiana com a tapeçaria “Center Medallion – stacked bricks with checkerboard frame”, tramada por Rebecca Jones Myles na década de 1950. Uma das joias da mostra, a obra de Myles evoca não somente as tradições afro-americanas de quilting, mas também novamente a experiência na cidade.
Vale destacar que Murillo vive na Inglaterra desde os 10 anos, mas sua infância na Colômbia influencia sua produção, sempre envolvida por ideias de trabalho, globalização e condições materiais, num cruzamento potente entre pesquisas sociais e políticas com investigações formais. Estudo inter-relacionado muito presente, também, na obra de Cildo Meireles.
Em Através, instalação de 1983 exposta em Inhotim, Cildo citava a impossibilidade de circular livremente entre os espaços domésticos e públicos por serem cerceados por mecanismos de vigilância, tanto no sentido físico quanto no psicológico e ideológico. Seis anos antes, ele criava Malhas da Liberdade, um clássico de Cildo presente na mostra, ressaltando um princípio caro a Murillo que reverbera em Xeque-mate(s): a arte abstrata pode incitar experiências plásticas e, ao mesmo tempo, aludir a condições políticas, de cativeiro e liberdade. A tela do Copan é apenas um, entre tantos padrões da urbe, que transforma percepções e experiências cotidianas. As paisagens das cidades estão sempre diferentes.
Xeque-mate(s), de Oscar Murillo
Quando: De 31 de agosto até 20 de setembro. De terça à sex., das 11h às 18h; sáb., 11h às 17h
Onde: Alameda Ministro Rocha Azevedo, 1052 – Jardins, São Paulo
Preço: Grátis
BETA GERMANO / Folhapress