Mostra dos Racionais MCs destrincha seu legado para toda a música brasileira

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Num bilhete, Pedro Paulo avisa sua mãe que vai ter de viajar para fazer um show em Minas Gerais. Em outro pedaço de papel, Dona Ana pede desculpas ao filho -“se até agora não fui uma boa mãe”- e se teve “atritos e isso veio a traumatizá-lo”. Mas ela diz ter orgulho de “ter sido escolhida para ser sua mãe”.

As mensagens, que revelam Mano Brown em um momento de intimidade, são uma das atrações da exposição “O Quinto Elemento”, sobre os Racionais MCs, que abre as portas nesta sexta-feira (4) no Museu das Favelas, em São Paulo. A sequência de bilhetes sugere um clima de tensão entre uma mãe preocupada e um filho que deseja ganhar o mundo com sua arte, uma amostra rara dessa relação, mesmo para os fãs que conhecem Dona Ana dos versos das músicas.

Parte da magia da exposição, que ficará em cartaz por seis meses, está na humanização dessas quatro figuras mitológicas da música. Em uma das salas, eles se revelam por meio de objetos particulares -Ice Blue com faixas de jiu-jítsu, KL Jay com o primeiro toca-discos que usou nos Racionais, Edi Rock com uma bicicleta retrô e Brown com sua coleção antiga de futebol de botão.

A história é contada desde antes do nascimento dos artistas. Em uma parede estão expostos os testes de DNA de cada um deles, mostrando que todos têm ancestrais que passaram pela Costa da Mina, na região de Gana, Togo, Benim e Nigéria.

Eliane Dias, empresária dos Racionais, mulher de Mano Brown e curadora da exposição, chama isso de quinto elemento. “Um ancestral de todos eles passou pelo mesmo lugar no mesmo momento. Essa junção, o quinto elemento, não existe há 35 anos, mas há muito mais tempo”, ela afirma.

O termo adquire mais significados no contexto. Ele se relaciona com o quinto elemento da cultura hip-hop -o conhecimento, além da rima, da batida, da dança e do grafite. Casa com a entrada de um grupo de rap numa instituição formal de aprendizado.

DJ do grupo, KL Jay debateu a presença do gripo num museu em encontro com a imprensa na quarta-feira. “O reconhecimento maior, que sempre existiu, desde a primeira música, veio da rua”, disse. “Agora, culturalmente, artisticamente, é importante estar nesses espaços. Influencia outras gerações.”

Para Mano Brown, o grupo não foi “nem a primeira nem a única” voz negra, mas “parte de uma história”. “Os Racionais não inventaram a militância”, disse ele. “Entramos na faculdade como história, e histórias que eram apagadas.”

Já Ice Blue afirmou que a trajetória do quarteto de rap é sinônimo de resistência. “Para estarmos aqui, dissemos não a muito dinheiro e a coisas que seduziam quatro pretos pobres e favelados.”

“A nossa ideologia transcendeu”, acrescentou. “Era um momento ideológico, até por sermos pobres, termos fome e outras necessidades. Eu e Brown corremos da zona sul porque a gente sabia que ia morrer lá. São sentimentos diversos que, no Brasil, pretos como nós sentimos. Isso é o reflexo do Racionais, jovens negros sempre oprimidos e sem poder falar. A gente trouxe essa fala com outros.”

Há livros na exposição que mostram essas influências ideológicas, caso do escritor e guerrilheiro comunista Carlos Marighella. Outro desses nomes, o militante Malcolm X, estampou o moletom que KL Jay usava no evento no museu.

Mano Brown discutiu também como a obra do grupo reflete as periferias de São Paulo e do país. “Os Racionais sempre procuraram ser fiéis ao que acontecia. Algumas narrativas não agradaram a militância, que queria algo utópico. Diziam que ‘agora os Racionais estão vendendo neoliberalismo’. Não. O Brasil escolheu o neoliberalismo. Como vou fazer rap falando de socialismo se dois terços da periferia escolheu o outro lado?”

Isso é algo visto ainda na história fonográfica do grupo, que na exposição ganha espaços temáticos para cada álbum, com recortes de jornais e revistas antigos, fotos íntimas e filmagens de shows. Se “Sobrevivendo no Inferno”, de 1997, era sombrio e resultado da era de violência extrema em São Paulo, “Nada como um Dia após o Outro Dia”, de 2002, refletia o momento de otimismo.

Do mesmo jeito, “Cores e Valores”, de 2014, traz a visão do Racionais sobre uma época de inclusão de classes pobres pelo consumo, expressada no funk ostentação e no trap. Essa abordagem socialmente contemporânea, diz Mano Brown, dá o tom do próximo álbum -como disse Edi Rock recentemente à Folha, ele está previsto para o ano que vem.

“Houve uma época em que a nossa luta por melhoria era simplesmente de coisas materiais”, disse Brown. “Até hoje, o que falta para a favela é dinheiro. Não é filosofia, conhecimento. Esquece essas ideias. Se você tem a oportunidade de botar a mão no dinheiro, tem que botar. Para o preto, é essencial ter dinheiro. Quem trouxe a ideia de que dinheiro faz mal para nós é o branco dono de fazenda. É o dinheiro da sobrevivência, não da ostentação.”

Há um ano sendo desenhada, a mostra surgiu da pesquisa de Eliane Dias, que já expôs parte do material em outras ocasiões. “O Quinto Elemento”, que marca a chegada do Museu das Favelas a um novo prédio, no complexo Pateo do Collegio, é bem maior que as empreitadas anteriores, e foi feita com a colaboração dos jornalistas Jairo Malta, colunista deste jornal, e André Caramante, além do rapper Vitinho RB.

Natália Cunha, diretora do museu, diz que esta mostra ajuda a atrair gente que não costuma frequentar o espaço. “É importante trazer uma história representativa para dentro de um museu, um espaço público, que tem a missão de ficar acessível, mas encontra muitas barreiras. Contando uma história que é da gente, que as pessoas já se identificam, fica mais fácil.”

Ela diz que a seção da mostra que mais a impactou foi a “sala dos trutas”, espaço dedicado à memória de pessoas próximas aos Racionais que já morreram. Há gente conhecida, como o rapper Sabotage, e anônimos relevantes, como Jocenir, ex-detento e coautor da música “Diário de Um Detento”.

Para os fãs, os materiais mais chamativos talvez sejam os rascunhos de alguns dos maiores versos do rap brasileiro. É possível ver o estilo caótico de escrita de Mano Brown, que risca e reescreve as rimas no papel, enquanto Edi Rock tem uma caligrafia que parece mais limpa e organizada.

Para Dias, “O Quinto Elemento” representa a oportunidade de compartilhar uma visão de dentro do Racionais. Há na entrada, por exemplo, um aparelho de som, porque o quarteto sempre anda com uma caixa de som -exatamente como Edi Rock chegou ao museu para o evento da última quarta.

“Para mim, Racionais também é uma fonte de inspiração, e eu também os estudo. Só tenho o privilégio de estudar de dentro”, diz a curadora. “Hoje, estou insuportável. É como se estivesse parindo. Vim para cá chorando. Não sou essa pessoa. Sou a guerreira, mas hoje estou uma chorona.”

RACIONAIS MCS: O QUINTO ELEMENTO

Quando Abertura na sexta-feira (6). Terça a domingo, das 10h às 17h

Onde Museu das Favelas – Largo Páteo do Colégio, 148 – Centro Histórico – São Paulo

Preço Gratuito, mediante retirada de ingresso antecipado no site ou na recepção

Curadoria Eliane Dias

LUCAS BRÊDA / Folhapress

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