Movimento lança estudo sobre papel de mulheres negras na transformação do Judiciário

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O sistema Judiciário brasileiro reproduz aquilo que a sociedade é: patriarcal, colonialista, machista, sexista e, acima de tudo, racista, afirma Rosana Rufino, presidente da Comissão da Verdade Sobre a Escravidão Negra da OAB (Ordem dos Advogados do Brasil) de São Paulo.

Esse cenário impacta diretamente a realidade de mulheres negras, atravessadas duplamente pelos vieses de raça e gênero, explica. Para ela, um Judiciário mais diverso em sua composição, capaz de refletir a estrutura populacional brasileira, seria mais efetivo na promoção da justiça.

Nesse sentido, o movimento MND (Mulheres Negras Decidem) lançou, nesta terça-feira (26), o estudo “Mulheres negras pela transformação do Poder Judiciário”.

A pesquisa resgata a trajetória feminina negra no direito e relaciona os impactos dessa presença no sistema de Justiça. O estudo foi motivado pela campanha “Ministra Negra Já”, que reivindica a nomeação de uma mulher preta ou parda para vaga de Rosa Weber no STF (Supremo Tribunal Federal).

“Faltavam informações mais precisas e ricas sobre as contribuições de mulheres negras na instância do Judiciário. Elas existiam em alguma medida, mas estavam esparsas”, afirma Gabrielle Abreu, coordenadora do coletivo.

O estudo é dividido em duas partes.

A primeira traz os nomes de mulheres negras que atuaram no Judiciário ao longo da história, como Esperança Garcia no século 18, considerada a primeira advogada do Brasil, e Dora Lucia de Lima Bertulio, precursora do campo teórico-prático denominado Direito e Relações Raciais, ainda no final dos anos 1980.

Já a segunda parte faz uma análise da sub-representação negra nos tribunais até os dias de hoje. Para isso, a pesquisa se baseia em dados do Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário, publicado pelo CNJ (Conselho Nacional de Justiça).

De acordo com Stella Santos, advogada e membro da Aliança Feminina Pela Equidade e da iniciativa Black Sisters In Law, o estudo mostra que diversidade e direitos humanos são tão parte do arcabouço jurídico profissional quanto qualquer outra área do direito.

“E ele é cirúrgico ao apontar que, quando a gente tem uma mulher negra no sistema de Justiça, a gente tem uma visão que transcende o punitivismo e entra no campo da reparação, da conciliação e da promoção de uma sociedade mais pacífica”, diz.

Para ela, esse papel só pode ser desempenhado por uma mulher negra. “Uma liderança feminina negra, justamente por representar muita das coisas que a sociedade julga como não merecedoras de direitos e não legítimas, tem a capacidade de abarcar todo mundo, inclusive os homens negros”, afirma.

Stella defende que a questão de gênero e raça devem ser levadas em consideração conjuntamente neste momento, já que, em mais de 130 anos de história, o STF nunca teve uma mulher preta ou parda em seu quadro de ministros.

Escravizada, Esperança Garcia é o primeiro nome citado no estudo. Em 2020, ela recebeu o título de primeira advogada do país, concedido pela OAB do Piauí, onde viveu. Isso porque em 1770 ela escreveu ao governador do estado denunciando os maus-tratos que sofria.

“A experiência de mulheres negras no Judiciário tem sido uma ferramenta de mudança social”, afirma Rufino. “Esperança Garcia tem um valor simbólico e representativo muito forte para toda a advocacia, por quebrar com o estigma de que a branquitude criou o direito”, diz.

Outra mulher negra citada é Mary de Aguiar Silva. Em 2018, o Tribunal de Justiça do Estado da Bahia a reconheceu como a primeira juíza negra do Brasil. Após se formar em direito pela Universidade Federal da Bahia, ela foi promotora de justiça, até ser nomeada juíza de direito da comarca de Remanso (a 716 km de Salvador).

A professora da Faculdade de Direito da USP Eunice Prudente também é citada como uma mulher negra com importante atuação no Judiciário. A dissertação desenvolvida por ela sob o título “Preconceito Racial e Igualdade Jurídica no Brasil” é apontada como a primeira a promover o debate sobre o pensamento jurídico.

“O trabalho de Eunice Prudente consiste em uma leitura complexa e rica a respeito de como a ordem jurídica brasileira foi instrumentalizada para colocar pessoas negras à margem da sociedade”, diz o estudo.

Ao trazer esses nomes e suas contribuições, a pesquisa defende que as mulheres negras exerceram papel fundamental para “evidenciar os pactos narcísicos da branquitude nas instituições jurídicas e as contradições e limites dos ideais do liberalismo sobre os quais se assenta o pensamento jurídico tradicional”.

Segundo Caroline Scanci, pesquisadora do Mulheres Negras Decidem, a composição branca das instituições jurídicas produz um cenário de apagamento das trajetórias e narrativas negras nesses espaços.

“Essas narrativas fazem parte das trajetórias de mulheres negras que denunciam as arbitrariedades, as desigualdades e os impactos indiretos de decisões judiciais que reproduzem opressões de raça, classe e gênero”, afirma.

Para Gabrielle Abreu, essas mulheres vislumbravam o acesso à justiça como meio estratégico para a garantia de direitos. “Voltados à população negra, mas também uma garantia de direitos para a sociedade brasileira como um todo”, afirma.

Esse é um dos motivos pelos quais o Mulheres Negras Decidem fez campanha para a indicação de uma negra para a Suprema Corte.

“Existe da nossa parte uma expectativa de que toda essa discussão em torno da defesa de uma mulher negra no STF suscite uma discussão mais ampla sobre o racismo no sistema judiciário”, afirma. “Mas queremos vê-las em outras instâncias também”, conclui.

O estudo aponta ainda a ausência de perspectivas negras nas faculdades de direito. Segundo Scanci, essa falta ocorre em dois campos: na composição curricular e no corpo docente. Para ela, todas as disciplinas precisam ser desenhadas e ministradas a partir do compromisso de oposição à reprodução do racismo pelo direito.

A partir dos dados do Diagnóstico Étnico-Racial no Poder Judiciário, o estudo constatou que a ausência de homens e mulheres negras na Suprema Corte e nos tribunais superiores reflete uma desigualdade histórica no Poder Judiciário.

“Esses dados não nos surpreendem. Já imaginávamos encontrar um cenário como esse que o CNJ levantou”, afirma Abreu.

PRISCILA CAMAZANO E PAOLA FERREIRA ROSA / Folhapress

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