SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando o assunto é aborto, é comum encontrar argumentos de que o feto é mais importante que a mulher. Enquanto isso, quem defende o procedimento diz que a prioridade é da vida que gera. Em países como os Estados Unidos, onde a derrubada de Roe vs. Wade colocou em cheque o direito à intervenção, e o Brasil, em que o procedimento é autorizado em poucos casos, o discurso não é pacificado.
Agora, também não é incomum topar com frases de efeito que colocam o aborto como uma ameaça à saúde mental das mulheres.
Foi essa mudança de discurso da proteção do feto para um suposto cuidado com a saúde mental que impulsionou Diana Greene Foster, demógrafa e professora da Universidade da Califórnia em São Francisco (EUA), a liderar um estudo que medisse o impacto do procedimento em gestantes. Durante oito anos, a pesquisadora fez 8.000 entrevistas com mais de 1.100 mulheres grávidas que desejavam realizar o aborto.
“Quando comecei o estudo Turnaway, era esse mote que guiava o debate nos Estados Unidos. Haviam slogans políticos e outdoors que diziam ‘o aborto machuca mulheres’ e a Suprema Corte decidiu manter restrições ao procedimento porque parecia razoável assumir que mulheres seriam machucadas por fazer abortos, mesmo sem dados. Eu entendi que havia uma necessidade desesperada por dados nesse assunto”, diz a pesquisadora à reportagem.
Uma vez que o aborto é uma prática comum, era necessário saber se fazê-lo realmente gerava prejuízos. Foster escreve que antes de seu trabalho, as pesquisas sobre danos causados pelo procedimento incluíam mulheres que não tinham sequer considerado o aborto. Ela diz que o problema de fazer essa comparação é que ela mistura aquelas possivelmente estáveis, em relacionamentos felizes, que desejavam bebês, com mulheres que não se viam felizes ou preparadas, o que poderia enviesar a questão da saúde mental.
O estudo chega ao Brasil na forma do livro “Gravidez Indesejada: the Turnway Study”, publicado pela editora Sextante. O título mantém o espírito da pesquisa, que engloba mulheres que conseguiram abortar e aquelas tiveram o procedimento negado pelo sistema de saúde, batizadas de “turnway”.
“Inicialmente, focamos nas pessoas que conseguiram seus abortos. Com o tempo, o grupo que teve o aborto negado foi o que teve o resultado alterado. As pessoas que conseguiram o procedimento seguiram suas vidas, se formaram na faculdade. As que tiveram o aborto negado viram suas vidas saírem dos trilhos”, afirma a pesquisadora.
Por ter esse controle de variável, o estudo chega perto do que se pode considerar padrão ouro, segundo a antropóloga e professora da UnB (Universidade de Brasília) Débora Diniz, especialista em direito reprodutivo. Ela afirma que o discurso do impacto na saúde mental das mulheres é presente no Brasil ao ponto de ter mobilizado uma discussão durante as audiências públicas sobre a descriminalização do procedimento no STF (Supremo Tribunal Federal) em 2018, quando o Conselho Federal de Psicologia foi chamado.
Já ali, o parecer foi de que o procedimento não causava impacto negativo, mas, até agora, nenhum estudo tinha a magnitude do de Foster, diz Diniz.
O resultado da pesquisa é claro: abortar não faz mal à saúde mental das mulheres e o sentimento que prevalece é o alívio, não o arrependimento. O que faz mal, segundo Foster, é ter que levar adiante uma gestação não planejada e não desejada só porque alguém acha que interrompê-la é pecado. “As mulheres que tiveram seus pedidos de aborto negado, inicialmente, tiveram mais problemas com a saúde mental. Elas eram mais ansiosas, eram menos satisfeitas com a vida, tinham níveis maiores de estresse.”
A pesquisadora encontrou justificativas comuns dadas pelas mulheres que optaram por interromper suas gestações -geralmente, há mais de uma razão. Das entrevistadas no estudo, 40% afirmaram buscar um aborto por não estarem preparadas financeiramente para ter filhos; 36% porque acreditam que aquele não era o momento certo para ter um filho; 31% por motivos relacionados a seus parceiros.
“Quando elas não conseguem fazer um aborto é que vemos as preocupações aparecendo, elas têm mais chances de cair na pobreza, menos chances de cuidar dos filhos preexistentes, menos chances de ficar em relações amorosas de qualidade e aumentam as chances de continuar contato com parceiros abusivos.”
Ela diz que é até possível traçar um perfil das mulheres que buscam abortos, mas que a gravidez não intencional afeta a todas e não se limita a certos grupos. Nos EUA, onde foi feita a pesquisa, o cenário se assemelha ao Brasil: mulheres negras -e, lá, as latinas- têm mais chances do que as brancas de fazerem abortos.
O estudo mostra que a decisão de abortar é bastante objetiva. Entre as entrevistadas, 30% das consideraram a escolha fácil, enquanto 29% relataram ser relativamente difícil e apenas 14% consideraram a decisão muito difícil.
No livro, Foster destaca que uma vez que a decisão foi tomada, governos não deveriam fazer mulheres esperarem para realizar o procedimento, caso de algumas políticas públicas que obrigam gestantes a pensar sobre o aborto depois que iniciam o processo para fazê-lo.
“Mais de 95% das pessoas que conseguiram seus abortos disseram que aquela foi a decisão certa para elas. Perguntamos às pessoas que tiveram o aborto negado se elas se sentiam gratas pela negativa, inicialmente elas dizem ainda querer muito o aborto”, diz a pesquisadora.
Ela observou, porém, que depois que as mulheres que queriam abortar tiveram seus bebês, a porcentagem das que diziam ainda querer ter abortado caiu para 10%. Mas a pesquisadora não atrela esse resultado a sentimentos de arrependimento.
“As pessoas querem sentir que suas vidas acabaram dando certo e isso é ótimo. Seria muito difícil criar um filho tendo a sensação que você não queria ele.”
Entre as mulheres que fizeram abortos, algumas tiveram filhos mais tarde. Para Foster, fazer a interrupção foi o que permitiu que essas crianças viessem em circunstâncias melhores, em que eram desejadas e planejadas. “Mulheres que fizeram abortos e depois tiveram filhos eram mais próximas desses filhos do que as que tiveram o aborto negado e tiveram que criar esse filho não planejado”, diz ela. “A lição do estudo é que é possível confiar nas decisões das mulheres.”
BÁRBARA BLUM / Folhapress