Mulheres que trabalham em alto-mar relatam desafios em ambiente dominado por homens

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Quando entra no refeitório da embarcação onde trabalha por 14 dias consecutivos antes de passar outros 14 dias em terra, Raylaine se sente um “pontinho” diferente no meio de cerca de 200 trabalhadores homens. “Você chega e todo mundo te olha, não tem jeito.”

A segurança do trabalho Raylaine Silva, 29, da Ocyan, companhia fornecedora do setor de óleo e gás que faz parte do grupo Novonor (ex-Odebrecht), trabalha há oito meses em embarques. Mesmo já estando acostumada a um ambiente masculino, ela diz que sentiu estranheza na primeira vez que esteve em alto-mar.

“Às vezes sinto vergonha. Mas isso vai melhorando depois. Com o tempo, eles também acabam se acostumando com a presença feminina no dia a dia”, afirma.

Como seu trabalho exige uma carga de liderança para orientar e fiscalizar o uso correto dos EPIs (Equipamentos de Proteção Individual), Raylaine conta que precisa de jogo de cintura para ser ouvida, inclusive nos treinamentos que faz com as equipes. “Tem que ter jeito para se impor sem parecer que está mandando”, diz.

Essa é a mesma sensação da Fabiana Capiche, 37, que trabalha como enfermeira embarcada há mais de dez anos, quatro deles na sua atual empresa, a Foresea, que faz afretamento e operação de sondas para águas ultraprofundas.

Fabiana é a única enfermeira de seu turno em um dos hospitais da embarcação, então acaba sendo responsável por tudo o que acontece no local. “Diferentemente de um hospital comum, em terra, o profissional da saúde offshore [no mar] precisa se ocupar da fronha do travesseiro até o cuidado com os pacientes. É uma função de liderança”, conta.

Ela diz que já ouviu de homens que suas instruções não eram importantes e, no meio de uma reunião, um rapaz se recusou a escutar o que ela tinha a dizer. Outro problema são piadas de cunho sexual, queixa comum entre as profissionais dessa área

Quando a mulher precisa ser mais assertiva para ser ouvida, acaba sendo taxada de “brava”. A engenheira de petróleo Gleyde Moreira, 38, que está há 13 anos na SLB, empresa francesa prestadora de serviços para o setor de óleo e gás, diz que esse é um relato comum entre suas amigas de profissão.

Ela já trabalhou embarcada em campos nos Estados Unidos, no golfo do México, em Moçambique e no Brasil, mas, depois que se tornou mãe optou por trabalhar em terra na companhia.

Em 2014, Gleyde assumiu a função de supervisora de processos e se viu em uma situação de ter que “se provar o tempo todo” para ganhar respeito.

Ela lembra que já foi a maior especialista do mundo de uma sonda específica e, certa vez, o funcionário de uma empresa parceira, para a qual a SLB prestava serviços, quis tirar dúvidas sobre essa sonda com um subordinado de Gleyde.

“Ele nem se questionou se a especialista era eu ou meu subordinado. Foi perguntando direto para ele, e eu deixei isso acontecer para ver até onde ia. Uma hora meu subordinado não soube responder e me perguntou. Quando o rapaz viu que eu era a especialista, ficou com vergonha e pediu desculpas.”

Gleyde conta que, apesar de sua empresa ter um código de conduta que protege as mulheres, o setor de óleo e gás no Brasil ainda tem uma cultura muito machista. Normalmente em seus turnos nas embarcações são 200 homens para, no máximo, cinco mulheres.

Programas tentam elevar participação feminina nas empresas

Empresas do setor têm adotado programas para aumentar o número de mulheres trabalhadoras, mas a engenheira Cristina Pinho, 65, conselheira da Ocyan, ressalta a importância da presença feminina desde o topo da hierarquia das companhias, como no conselho de administração, onde acontecem as tomadas de decisão, para que haja uma mudança de cultura corporativa.

Cristina tem uma longa carreira em cargos de gerência na Petrobras, onde trabalhou embarcada entre 1989 e 2004. Ela diz que hoje os canais de denúncia das empresas funcionam, mas, quando começou, havia casos graves de assédio moral e sexual que não eram punidos.

“Conheço mulheres que não se sentiam seguras nos seus camarotes, porque homens ameaçavam entrar lá”, lembra. “Com o tempo as empresas foram obrigadas a tomar providências, porque aumentou o número de mulheres nas companhias. E a diversidade de pensamentos nos conselhos também ajuda. Hoje a punição para esse tipo de caso é severa, gera demissão”, diz.

Cristina encabeça ao lado de outras mulheres o Women Corporate Directors, organização global que estimula a inclusão de mulheres em conselhos de administração das companhias.

Embora esse ainda seja um longo caminho a ser trilhado, o ambiente corporativo para as mulheres do setor já tem dado sinais de melhora.

Fabiana Capiche, da Foresea, diz que, embora haja casos isolados de resistência às suas instruções, no geral a empresa onde trabalha dá voz ativa para ela assumir uma postura de comandante, como a sua função exige.

Gleyde Moreira, da SLB, adiciona que há mais compreensão hoje também com relação à maternidade. Ela conta que a empresa deu opção a ela sobre voltar ou não a trabalhar offshore depois que nasceu sua filha.

Além das iniciativas das empresas, Fabiana ressalta que os homens estão cada vez mais conscientes e diminuiu bastante uma prática muito comum antigamente de um rapaz acobertar sempre o que o outro fazia de desrespeitoso em relação às mulheres.

“Muitos deles até se revoltam com o que o colega faz, porque eles pensam que poderia ser com a filha ou a mãe deles”, diz. “Apesar das dificuldades, eu posso dizer que me sinto aceita no meu meio”.

STÉFANIE RIGAMONTI / Folhapress

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