SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um dos mitos ainda em voga sobre o Pantanal se refere às ocupações humanas. Muitos entre nós ainda pensam na região como um ambiente historicamente inóspito, que exigia heroísmo daqueles que se arriscavam a morar em uma das maiores áreas alagáveis do planeta.
Não é assim, mostram Maria de Fátima Costa e Pablo Diener, professores aposentados da Universidade Federal de Mato Grosso e autores do livro recém-lançado “Pantanal – Origens de um Paraíso”. Esse espaço, escrevem os historiadores, “desde muito cedo foi habitado por populações humanas. No seu interior, há múltiplos vestígios atestando que ali a presença de homens e mulheres é bastante antiga”.
A publicação não se restringe à história milenar desses povos que viveram na região. Aborda ainda como configurações geológicas específicas, enormes quantidades de água e uma série de outros fatores da natureza deram origem ao que conhecemos como Pantanal, espaço complexo e frágil como, na comparação dos autores, “um belo castelo feito de cartas de baralho”.
O livro reconstitui ainda cinco expedições naturalistas, ocorridas entre 1750 e 1850, que foram essenciais como estudos pioneiros sobre o território.
Mas o que chama mesmo a atenção ao longo da leitura é a descrição das características das antigas ocupações humanas. De acordo com Costa e Diener, grupos habitam a bacia do Alto Rio Paraguai há pelo menos 8.000 anos.
Aqueles que viviam por lá nesse período mais longínquo eram hábeis no manejo dos instrumentos de pedra e sobreviviam à base da coleta, da caça e da pesca. Moravam às margens das grandes lagoas cercadas por morros, onde o solo era mais apropriado para a agricultura e havia fartura de madeira para, entre outras coisas, construir canoas.
“Ainda se fala muito em espaços desocupados, sem população, o que é uma pretensão eurocêntrica. Prevalece uma ignorância generalizada”, afirma Diener à Folha. “Pensam no Pantanal como um deserto de águas”, complementa Costa.
Não há dados inéditos no livro não é esse o propósito da publicação. Em linhas gerais, os autores conciliam dois movimentos: por um lado, reconstituem e contextualizam registros históricos, como os feitos pelo colonizador espanhol Cabeza de Vaca, que esteve na região no século 16; por outro, pinçam as pesquisas recentes mais relevantes sobre a região, produzidas em universidades, para apresentá-las de modo acessível a um público mais amplo.
No capítulo mais voltado à arqueologia, Costa e Diener chamam a atenção para dois legados deixados pelos primeiros habitantes pantaneiros. De início, os sítios rupestres, conjuntos de gravuras e pinturas nas paredes rochosas de locais como a lagoa Gaíva, em Corumbá (MS).
Estudos recentes citados pelos autores concluíram que as figuras foram inscritas nas pedras para ajudar os moradores a medir o nível das águas, assumindo a função de calendários. A partir desses cálculos, eles poderiam definir, por exemplo, os ritos cotidianos. Ou seja, era uma linguagem gráfica vital para o dia a dia das comunidades.
Além dos sítios rupestres, o livro nos apresenta aos aterros, também chamados de aterradinhos. São “montículos que se projetam na paisagem, formados por acúmulo de restos alimentares e sedimentos de vários materiais orgânicos, cobertos por camadas de terra, vegetação e restos de conchas de moluscos”. Serviam provavelmente como área de proteção das inundações e também como marcos de divisão de territórios.
“As pinturas rupestres são imediatamente visíveis, mas os aterros não. Num primeiro momento, a gente acha que se trata de uma ilha ou de um capão do mato quando, na verdade, é um arquivo humano a céu aberto”, afirma Costa.
A professora lembra que os aterros mais estudados até os dias de hoje estão localizados no território dos guatós, indígenas de grande importância para a história do Pantanal.
Os conquistadores espanhóis foram os primeiros europeus a chegar à área inundável da bacia do Alto Rio Paraguai. Quando alcançaram a região, no início do século 16, encontraram dezenas de diferentes etnias. Não existem informações mais precisas sobre o tamanho dessas populações, mas os relatos deixados pelos espanhóis indicam lugares densamente povoados, com uma variedade de línguas e costumes.
Entre os grupos indígenas vistos pelos europeus nesses contatos iniciais, estavam justamente os guatós, que ainda sobrevivem, e os xarayes, extintos. Aliás, até meados do século 18, não havia Pantanal nos mapas. A região era conhecida como Lagoa dos Xarayes.
O Brasil sabe pouco sobre a exuberância que é o Pantanal. E quase nada sobre os primórdios humanos da região. O livro de Costa e Diner pode ser um primeiro passo para reduzir, um tico que seja, nossa ignorância.
PANTANAL – ORIGENS DE UM PARAÍSO
Preço R$ 100
Autoria Maria de Fátima Costa e Pablo Diener
Editora Capivara (240 págs.)
NAIEF HADDAD / Folhapress