Mundo não vive catástrofe, só volta à desordem normal, diz Simon Sebag Montefiore

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Vivemos em uma sociedade secular que respeita demais a história, diz Simon Sebag Montefiore. “Ela é quase reverenciada e, assim, pode envenenar tudo”, disse o historiador na noite desta segunda-feira, na palestra que encerrou o ciclo Fronteiras do Pensamento de 2024.

É justamente por isso que é tão importante estudar o que já passou. “Hoje, muito do uso que vemos da História é distorcido. As pessoas matam por ela. É só ver o que está acontecendo no Oriente Médio. Quando ela se combina com o fundamentalismo religioso, se torna uma infusão perigosa e mortal”, explicou o autor, célebre por obras como “Os Románov”, “Stálin” e “Jerusalém”.

Em seu novo livro, Montefiore se propôs a um novo desafio: narrar a história do mundo, numa empreitada que levou três anos. A solução foi delimitar um recorte que afetasse todas as pessoas, em todos os lugares e épocas. A chave? A família.

Foi após perceber a relevância desse núcleo da organização humana que o britânico decidiu escrever “O Mundo: Uma História Através das Famílias”, publicado agora pela Companhia das Letras com mais de mil páginas.

“Os políticos perceberam que ela tem um poder sagrado. A família sempre representa a sociedade em que está inserida. A moral, a economia, o trabalho”, disse o escritor, que reforçou a capacidade do tema de trazer novas figuras para o centro da narrativa. “As mulheres e as crianças costumam sumir da história tradicional, mas não da história das famílias.”

Para Montefiore, momentos de incerteza e transformação como o de hoje fazem com que novas maneiras de contar a história sejam necessárias. “A história do mundo é um tônico para tempos complicados. Muita gente quer saber se estamos vivendo uma catástrofe”, disse o historiador. “É, na verdade, um retorno à desordem normal, apesar do período excepcional entre 1945 e 2016.”

Marcado por intenso jogo de xadrez entre os Estados Unidos e a União Soviética, os primeiros 50 anos após a Segunda Guerra Mundial teriam oferecido ao planeta uma estabilidade até então inédita. Com a queda dos soviéticos, os americanos teriam passado a “jogar paciência”. Mas, após 25 anos de monopólio indulgente, os EUA “cometeram erros colossais”. O resultado, para Montefiore, é uma nova conformação política.

“Agora vivemos um videogame multijogador”, definiu o historiador. “Mas isso não é excepcional. Antes da revolução industrial e da comunicação, toda a história do mundo era um jogo como esse.”

Para países como Índia, Rússia, Irã e Turquia, o momento serve de oportunidade para tentar emular grandes impérios do passado. Já outros, como o Brasil e a Indonésia, podem tentar capitalizar sua grande escala para, “sob as circunstâncias corretas”, se tornarem “competidores globais”.

Montefiore também destacou que o cenário põe em xeque muitas transformações sociais e políticas consideradas absolutas, como a criação de organizações de colaboração internacional e a “grande reforma liberal” dos anos 1950 e 1960. “Achávamos que eram ganhos definitivos contra a homofobia, racismo e machismo. Mas tudo precisará ser defendido de novo.”

Segundo o historiador, a crise do modelo sociopolítico atual significa que as pessoas passam a recorrer novamente a famílias e conexões “tribais”. E quatro poderes familiares estão em ressurgência no mundo: as monarquias absolutas; as monarquias constitucionais de países como Reino Unido e Bélgica; as dinastias democráticas, como o caso das famílias Bush, Clinton e Trump na política americana; e as monarquias republicanas, que usam dos símbolos da democracia para instaurar autocracias.

“A família mais poderosa da história é a Kim, da Coreia do Norte. É a única que tem, como herança, um arsenal nuclear. Mas o poder familiar está ressurgindo onde você menos espera”, destacou, citando como exemplos o Azerbaijão, Camboja, Uganda e Índia.

Por isso, defendeu Montefiore, a história da família continua essencial. “No fundo, as pessoas se importam mais com a sua família do que com a história ou o Estado em que vivem.”

O ciclo de conferências Fronteiras do Pensamento contou, neste ano, com autores como Stuart Russell, Muriel Barbery, Nouriel Roubini e Anna Lembke.

DANIEL SALGADO / Folhapress

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