Mundurukus investigados por garimpo buscam empresa suspeita para crédito de carbono, e MPF apura

MANAUS, AM (FOLHAPRESS) – Indígenas mundurukus suspeitos de garimpo ilegal no próprio território desenvolveram um projeto de crédito de carbono em parceria com uma empresa acusada de irregularidades em outras iniciativas de geração desses créditos na Amazônia.

O projeto foi colocado em prática sem consulta a boa parte das aldeias da Terra Indígena Mundurucu, no Pará, especialmente as que se opõem ao garimpo de ouro no território tradicional –a grande maioria das comunidades é contrária à mineração ilegal.

O caso passou a ser investigado pelo MPF (Ministério Público Federal) no Pará, que apura um “possível desrespeito ao procedimento de consulta prévia, livre e informada aos mundurukus”.

A Procuradoria cobrou explicações da Associação Indígena Pusuru, que abriga mundurukus denunciados pelo MPF à Justiça Federal por associação criminosa e garimpo ilegal, e da AGFOR Empreendimentos, a empresa que se associou aos indígenas para o desenvolvimento do projeto de crédito de carbono.

Segundo o MPF, também foram oficiados órgãos do governo federal, como Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas) e Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis).

A AGFOR Empreendimentos é uma empresa do norte-americano Michael Greene, com sede em Guarulhos (SP), segundo informado à Receita Federal. Greene está ligado a outros empreendimentos que levam o nome AGFOR, como Brazil AGFOR.

A reportagem constatou que no endereço informado por uma das empresas num site da AGFOR, em Manaus, funciona um açougue. Ninguém no açougue conhece o empreendimento. Depois do contato feito pela reportagem, o endereço foi retirado do site.

“A associação Pusuru entrou em contato com a AGFOR para realização de um projeto de crédito de carbono”, disse o advogado Sernio Vasconcelos Júnior, que afirma advogar para a associação.

“A consulta livre foi realizada em assembleia geral extraordinária no ano passado na aldeia Carapanatuba, contando com 88 caciques, conforme o previsto pela convenção número 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho]”, afirmou Vasconcelos.

Greene, em resposta por e-mail, disse não ter contrato com a Pusuru. “Tentamos no passado e foi muito complicado. Existe muita oposição porque há duas associações. Quando percebemos o quão complicado era, determinamos que realizar algumas orientações sobre os requisitos exigidos por projetos de créditos de carbono era a melhor maneira de ajudá-los”, afirmou.

Em nota, a Funai disse que a comercialização de créditos de carbono no mercado voluntário ainda depende de regulamentação, “especialmente no que se refere às terras indígenas”.

Em julho, a Defensoria Pública do Pará ajuizou quatro ações civis públicas que contestam projetos de crédito de carbono em assentamentos agroextrativistas em Portel (PA), no arquipélago do Marajó. Segundo a Defensoria, houve grilagem de terras públicas e uso de documentos inválidos de propriedade, cancelados pelo cartório. A Brazil AGFOR é uma das citadas nas ações na Justiça.

No caso da Terra Indígena Mundurucu, cuja cidade mais próxima é Jacareacanga (PA), AGFOR e Pusuru se associaram para tentar emplacar um projeto de crédito de carbono.

Os créditos de carbono são gerados a partir de atividades que evitam desmatamento e degradação da floresta. O instrumento que permite isso é o REDD+, desenvolvido no âmbito da Convenção da ONU sobre Mudança do Clima.

Um crédito de carbono equivale a uma tonelada de CO2 que deixa de ser emitida para a atmosfera em razão do desmatamento que foi evitado. Empresas atuam no mercado voluntário, em que créditos de carbono são gerados e vendidos a outras empresas que precisam compensar suas próprias emissões de gases de efeito estufa.

A reportagem esteve na terra mundurucu em setembro, para o segundo capítulo da série “Cerco às Aldeias”. A reportagem, publicada no último dia 7, mostrou que os garimpos ilegais seguem em plena atividade, com fluxo de garimpeiros pelo rio Kabitutu e por aldeias no curso do rio. A atividade engole roças dos indígenas e faz aumentarem casos de malária e diarreia.

Crianças mundurukus têm “retardo mental grave”, “atraso do desenvolvimento psicomotor” e “transtornos globais de desenvolvimento”, como consta em prontuários. Os casos podem ter relação com intoxicação das mães por mercúrio usado nos garimpos, segundo profissionais que acompanham essa realidade dos indígenas. Não há testagem nem assistência suficiente nas aldeias.

Em meio à continuidade dos garimpos, indígenas que exploram a atividade —e que pressionam e ameaçam outros indígenas, segundo denúncia do MPF à Justiça— passaram a tentar implementar um projeto de crédito de carbono. Não houve consulta em aldeias que vedam o garimpo, segundo lideranças ouvidas pela reportagem.

Na linha de frente do projeto está um indígena da associação Pusuru que foi denunciado pelo MPF como integrante de um grupo criminoso para exploração ilegal de ouro no território. Ao todo, 13 pessoas foram denunciadas, das quais 5 são indígenas –desses, 2 seguem na Pusuru. A Justiça Federal aceitou a denúncia, e os investigados viraram réus.

O advogado da associação afirmou que não houve interrogatórios nem detalhamento das acusações imputadas ao indígena. Sobre o projeto de crédito de carbono, o que a AGFOR fez foi apenas prestar consultoria, segundo Vasconcelos.

“Atualmente, não temos contrato com a AGFOR. Até o presente momento não há nenhuma irregularidade ou ilegalidade”, disse o advogado. “O povo munduruku sofreu muito com os garimpos ilegais que quase tornaram o rio Tapajós inabitável, e hoje o projeto se apresenta como a melhor alternativa de emancipação dos mundurukus e preservação das terras indígenas.”

Ainda não foram estabelecidos os valores da remuneração à AGFOR, conforme Vasconcelos, diante das “alegações de ilegalidades e de ausência de consultas”. “Quando se tornar realidade, aí será estabelecido o valor para pagar a assessoria da empresa.”

O dono da AGFOR afirmou que só desenvolveu projetos em assentamento em Portel. Aos mundurukus, segundo Greene, foram dadas orientações sobre as regras do mercado e informações sobre a necessidade de consulta prévia e livre, como determina a convenção da OIT, da qual o Brasil é signatário.

Sobre o endereço informado no site como sendo da empresa em Manaus, Greene afirmou que a AGFOR não está sediada na capital do Amazonas e que não tem ideia do endereço informado. “Conversamos com o web designer para corrigir isso.”

As acusações referentes ao projeto em Portel são uma “perseguição”, conforme o empresário. “Estou sendo perseguido por tentar ajudar seu povo.”

A Terra Indígena Mundurucu é a segunda mais impactada por garimpos ilegais no país, em extensão de área devastada. A primeira é a Terra Indígena Kayapó, também no Pará, onde aldeias foram cercadas por crateras e onde há cobrança de pedágio para escavadeiras. O fluxo de garimpeiros segue ativo, como mostrou a Folha de S.Paulo no primeiro capítulo da série “Cerco às Aldeias”, em junho.

Aos kayapós mebengôkres também houve promessa de recursos com geração e venda de créditos de carbono. A empresa responsável, Carbonext, porém, desistiu do projeto. A companhia disse que as tratativas se deram com transparência e respeito.

VINICIUS SASSINE / Folhapress

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