Museu de Arte do Rio destaca evolução do funk na sociedade em nova mostra

RIO DE JANEIRO, RJ (FOLHAPRESS) – Há pouco mais de duas décadas ele desceu os morros e tomou o asfalto, para pavor das classes mais e menos altas do Rio, de São Paulo e do Brasil. O medo e as críticas não foram suficientes para abafar o batidão daquela que era a nova “voz do morro, sim, senhor” e que, ao contrário de outros ritmos, veio para ficar. Sua voz, grave ou aguda, seu ritmo e rebolado chegaram a dominar o carnaval e se tornaram parte do cinema, da TV e se misturaram a outros gêneros musicais.

Ninguém talvez jamais fosse imaginar que o funk, ritmo que se tornou carioca por excelência a partir dos anos 1990, fosse ocupar duas salas de uma das principais instituições culturais do Rio de Janeiro, o Museu de Arte do Rio, o MAR.

Mas nesta Babilônia inconfessa que —felizmente— resiste às definições taxativas e artificiais do mundo de hoje, seguindo o curso caótico e híbrido de sua história, é o que está acontecendo.

Até julho de 2024 fica em cartaz no museu a mostra “Funk: Um Grito de Ousadia e Liberdade”, com curadoria de Marcelo Campos Jr., curador-chefe do MAR e sua equipe, junto à atriz e pesquisadora de dança e sexualidade Taísa Machado e do DJ e ativista negro Dom Filó, da Cultne, dona do maior acervo audiovisual negro do Brasil.

A mostra reúne mais de 900 obras e registros documentais de cem artistas —a maior parte ligados às comunidades e ao funk– e faz um percurso em mais de um século da história social, política e cultural do povo negro e trabalhador carioca até chegar ao funk, inserindo-o nessa estrada histórica e cultural do Rio de Janeiro.

Logo na entrada, duas vídeo-instalações postas frente a frente colocam esses tempos em diálogo. Numa parede, temos, em preto e branco, um casal de dançarinos de samba. Em outro, garotos negros dançando o passinho, bastante presente nas favelas e subúrbios do Rio. A obra é do artista Emílio Domingos.

Na sequência, o público atravessa um corredor escuro, com os nomes dos artistas e grupos participantes da exposição em neon, como se fosse, de fato, entrar em um baile. Mas não. É a entrada para a sala expositiva. “É um lugar noturno. o tempo todo a gente discutia isso. Seria uma exposição noturna”, afirma o curador Marcelo Campos Jr.

A primeira sala é dedicada ao século 20 e tem a colaboração de Dom Filó na curadoria. As primeiras obras e documentos, logo na entrada, apresentam um Rio de Janeiro de músicos e trabalhadores organizados que lutam pelo direito ao lazer.

“Nossa primeira pesquisa foi o Rio que dança. Era essa cidade dançante. Havia no Rio os clubes. Nesses lugares você tinha um consumo de pessoas que podiam ir a shows”, conta. “O nome cidade maravilhosa vem dessa cidade feliz. Em torno da cidade nova onde fica a prefeitura era uma cidade dançante.”

Uma história que começa no início do século, com as associações dos trabalhadores negros, como dos estivadores e da indústria, e vai até a fase da abertura política, no final dos anos 1970, início dos anos 1980. Época em que o tradicional bairro de Madureira, na Zona Norte da cidade, recebia nomes como Maria Bethânia no Cine Show Madureira —que lotava.

No espaço central da sala, há uma exposição de vinis de cantores dos anos 1960 e 1970, incluindo nomes nacionais como Toni Tornado.

Ícones da luta pelos direitos civis —como os “Panteras Negras”— e os cantores James Brown e Aretha Franklin também compõem a mostra, em registros fotográficos, reforçando o lado político. Neste espaço, a obra “Prosperar e resistir (2020)”, de Gabriel Labarba, mostra um punho negro fechado com braceletes dourados nos pulsos. O gesto simboliza a resistência do povo negro.

Ao lado delas, imagens feitas pelo fotojornalista e ativista negro Januário Garcia Leal, cujo acervo foi recém-adquirido pelo Instituto Moreira Salles, trazem registro da luta dos movimentos negros do Brasil na época do início da redemocratização, com registro de figuras históricas, como a intelectual e ativista Lélia Gonzales e o artista, intelectual e ativista Abdias do Nascimento.

“A ditadura proibiu os movimentos negros. No pior momento da ditadura você não podia andar em grupo. Você tinha que se arrumar e ir pro baile [sozinho]”, afirma Campos.

A segunda sala expositiva —”Baile de Favela” com curadoria de Taísa Machado— é totalmente dedicada ao funk. Desde a época em que, para se entrar em um baile, era preciso cruzar uma espécie de “corredor polonês”, até os dias atuais. Esse período inicial está retratado, logo na entrada, num desenho do artista Roberto Monteiro, que mostra garotos negros se alvoroçando sobre os outros.

“Começam a estimular a entrada das mulheres no funk para não ter porrada. [Elas dizem] ‘Vamos entrar para pacificar’”, conta o curador.

Porém, “elas entram e falam mal dos homens”. A funkeira Daisy Tigrona, que também é consultora da coletiva, criou uma instalação com uma manequim em cima de um palco improvisado sobre caixas de cerveja que retrata ela própria em início de carreira. “Ela canta uma música falando mal do homem de tudo que é jeito.”

Nessa ala da exposição, os artistas pertencem todos às comunidades. “A gente traz artistas que vivenciam os bailes”, explica. “Eles são de dentro do lugar e são artistas.”

O artista Herbert leva à exposição uma série de quatro obras que dialogam com obras e artistas clássicos, como a Monalisa de Leonardo Da Vinci e Vincent van Gogh. O cenário, porém, é a favela. O objetivo das obras é discutir o poder, como se vê em “Vivo de Janeiro a Janeiro, Não Só em Dezembro”, de 2021, que mostra a imagem de um garoto negro, de costas, com os cabelos loiros, num cenário cujo céu remete à textura das pinturas de Van Gogh.

Como não poderia deixar de ser, questões de gênero também entram numa das 11 alas da exposição. E quem ocupa o espaço central é um dos maiores fenômenos da história do funk, a Lacraia, companheira do MC Serginho e uma das poucas personagens do ritmo a ter um bordão para chamar de seu: “Vai, Lacraia/ Vai, Lacraia”.

Na mostra, a dançarina, falecida em 2011 aos 33 anos, tem registros seus no Jacarezinho, na Zona Norte do Rio, e no aniversário da rádio “O Dia” feitos pela fotógrafa Daniela Dacorso, além de uma série à Andy Warhol com reproduções de seu rosto, tanto em sépia quanto coloridos. Além de uma pintura em corpo inteiro na qual “ressuscita” como uma pombagira. Saravá!

Entre signos de ostentação, tão caros ao funk contemporâneo e presentes na mostra, e simulacros do mesmo retratados em telas, o que vemos é uma cidade que embruteceu no trato com os mais pobres. Do Rio dançante dos trabalhadores que se reuniam nos clubes ao Rio dos morros com seus fuzis e invasões policiais, temos uma cidade com (ainda) menos condições dignas para os trabalhadores. E mais precariedade e desigualdade, em todos os sentidos. Inclusive no cultural.

“Por que ‘Dancin’ Days’ [a novela de 1978, de Gilberto Braga] não teve uma protagonista negra? O movimento disco vai gourmetizar [a cena noturna]. Não se tem dinheiro para ir nessas boates [da zona sul]”, afirma Campos.

Assim sendo, os trabalhadores, que vivem, a partir dessa época, o início de uma forte precarização, buscam novas formas de cultura e entretenimento. “O baile de favela e o clube do subúrbio têm a mesma função: oferecer cultura para a pessoa não se deslocar para a Zona Sul. O funk vai ficando para dentro. Para ir [ao baile] você tem que ter um código. Não à toa você atravessa pessoas armadas.”

FUNK: UM GRITO DE OUSADIA E LIBERDADE

– Quando Qui. a dom., das 11h às 18h. Até julho de 2024

– Onde Museu de Arte do Rio – Praça Mauá, 5, Rio de Janeiro

– Preço R$ 20

DANILO THOMAZ / Folhapress

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