SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A paisagem é idílica e tem contornos bucólicos, com casinhas cercadas pela vegetação de um cafezal. Dois elementos, porém, rompem a atmosfera de placidez que paira sobre a pintura de Henrique Manzo.
Em um lado, vemos um trecho do solo desmatado. No outro, árvores estão reduzidas a galhos secos. Feito no começo do século 20, esse trabalho mostra não apenas a degradação ambiental que marca a história do Brasil, mas também como esse processo foi retratado de forma quase romântica nas artes plásticas.
“As nossas pinturas monumentalizavam positivamente essa história. Elas eram expostas como um testemunho da nossa construção nacional”, diz Paulo Garcez Marins, historiador e diretor do Museu do Ipiranga, onde está em cartaz a exposição “Onde Há Fumaça: Arte e Emergência Climática.”
A mostra reúne obras históricas da instituição e trabalhos contemporâneos para refletir sobre a crise ambiental. Além disso, a exposição lança um olhar crítico sobre o modo como a natureza foi representada nas artes plásticas ao longo dos anos. É isso o que fez Jaime Laurino ao reimaginar o quadro “Independência ou Morte”, possivelmente a obra mais conhecida do museu.
Intitulada “Independência e Morte”, o trabalho de Laurino mostra a emancipação do Brasil sem qualquer pompa ou heroísmo. No lugar de dom Pedro 1º e de seu séquito, o que vemos é um terreno arrasado e despovoado, onde predominam a lama e a vegetação rasteira.
Sobre a pintura, o artista escreveu dizeres como “Passa Boi, Passa Boiada”, em referência à célebre frase de Ricardo Salles, ministro do Meio Ambiente do governo Bolsonaro.
Durante uma reunião em 2020, o político disse que era preciso aproveitar a pandemia para passar a boiada, ou seja, alterar normas ambientais.
“São 500 anos de agressão à natureza”, diz Marins. “Por isso, a pintura do Pedro Américo foi reinterpretada não como uma certidão nascimento do Brasil, mas como uma certidão de óbito.”
As obras da mostra evidenciam que essa certidão começou a ser escrita quando Portugal colonizou o Brasil e implantou a monocultura no território. Esse sistema privilegia o cultivo de um único produto em grandes propriedades, favorecendo queimadas, desmatamento e o esgotamento do solo.
Nesse período, a mão de obra escravizada era largamente usada nos latifúndios. Por isso, a exploração predatória dos recursos ambientais era uma prática intrínseca à escravidão. “É uma maneira totalmente brutalizada de lidar com tudo, com os seres humanos e com a natureza.”
A brutalidade também está presente em um quadro de Benedito Calixto que retrata uma fazenda do Vale do Paraíba. No trabalho, é possível ver uma casa grande em frente a uma senzala em formato de arena.
“Essa imagem mostra a sociedade escravista estabilizada e esvaziada da tensão que a caracterizava. Só que tem uma coisa que desconstrói esse mundo ideal”, diz Marins, apontando para um morro desmatado que parece prestes a desmoronar sobre a fazenda.
“Uma tempestade poderia levar esse mundo ideal embora”, diz o historiador, acrescentando que a violência permeia a obra de maneira implícita. “Ela está inscrita de todas as maneiras. Seja num senhor de engenho que mora diante de uma prisão, seja num grupo de pessoas que vive debaixo de uma bomba-relógio.”
A mostra não se concentra apenas na degradação ambiental de áreas rurais. São Paulo também está em evidência em fotografias e pinturas.
Uma imagem, por exemplo, mostra a avenida Nove de Julho, na região central da cidade. Sob essa via, corre o rio Saracura, enterrado embaixo do asfalto. Outros tantos rios tiveram destino parecido na capital paulista, que virou uma espécie de cemitério fluvial ao longo dos anos.
“São Paulo se verticalizou e negou toda a natureza. Nós dizemos que os rios avançaram sobre a cidade, mas foi a cidade que avançou sobre eles.”
A capital invadiu também espaços verdes. Exemplo disso é o parque dom Pedro 2º, que aparece exuberante durante os anos 1940 em um quadro de Henrique Manzo. A partir dos anos 1960, porém, o local começou a definhar com a construção de viadutos.
“Esse quadro é outra certidão de óbito. A gente perdeu um parque que ficava perto de bairros operários, ou seja, um lugar que poderia levar qualidade de vida aos trabalhadores.”
Alguns dos artistas contemporâneos fizeram obras em que a natureza se rebela contra essas agressões. É o caso da série “Retomada”, de Uýra Sodoma. Nas fotografias, vemos a vegetação vencer o concreto e se espalhar por ruas e muros, como se estivesse reivindicando de volta essas áreas.
Em outra seção da mostra, a artista Mabe Bethônico expôs recortes de jornais que mostram a tragédia ambiental de Bento Ribeiro e Brumadinho -localidades de Minas Gerais devastadas pelo rompimento de barragens de rejeitos minerais.
Ao lado das obras, os curadores posicionaram telas históricas que mostram pessoas escravizadas em busca de minério. É como se os trabalhos criassem uma cronologia da crise ambiental.
“Esse problema não surgiu hoje. Na verdade, é o resultado de séculos de agressão”, diz Marins. Opinião parecida tem Vitor Lagoeiro, que assina a curadoria da mostra ao lado de Felipe Carnevalli e Marcela Rosenburg.
“É especialmente interessante falar sobre esse assunto num museu, porque emergência climática também é um assunto da história”, diz Lagoeiro, acrescentando que a exposição é importante para incentivar reflexões sobre esse tema.
“Não temos a pretensão de resolver o problema com a mostra, mas entendemos que é uma oportunidade de estimular o debate em torno do assunto e levá-lo para o maior número possível de pessoas.”
ONDE HÁ FUMAÇA: ARTE E EMERGÊNCIA CLIMÁTICA
Quando Ter. a dom., das 10h às 17h. Até 28 de fevereiro
Onde Museu do Ipiranga – rua dos Patriotas, 100
Preço Gratuito
Classificação Livre
MATHEUS ROCHA / Folhapress