SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Françoise Vergès quer virar o museu do avesso. A ativista e pesquisadora em estudos decoloniais afirma que a instituição, vista por ela como falida, precisa se reinventar por completo para responder aos anseios dos novos tempos: as mudanças climáticas, os direitos trabalhistas e a representatividade de minorias.
“Precisamos discutir a conservação, o treinamento, precisamos repensar a necessidade de uma hierarquia entre os funcionários e a diferença de pagamento entre uma faxineira e um artista. Deve haver o reconhecimento de que o museu não existe sem as pessoas que limpam”, prega a autora, em entrevista à reportagem no saguão de um hotel em Pinheiros, na zona oeste de São Paulo.
Ela vai na mesma toada em sua crítica ao projeto ocidentalizado de museus, inclusive batendo na tecla da questão feminista. “Nós demandamos mais representação negra, indígena e não branca nas paredes do museu, mas não podemos esquecer de nos perguntar quem está fazendo a limpeza? Essa mulher tem direitos trabalhistas? Ela precisa limpar tudo bem cedo ou bem tarde, para que ninguém a veja?”
A ativista lança, pela editora Ubu, o livro “Decolonizar o Museu”, em que visita pensadores como Aimé Cesáire e Frantz Fanon para propor a perturbação da ordem da arte.
Não que o cenário esteja de contemplação silenciosa. O livro de Vergès chega às livrarias entre protestos contra a mudança climática que jogaram bolo na Mona Lisa, sopa nos girassóis de Van Gogh e purê no trigo de Monet. Além disso, as instituições são cada vez mais pressionadas para rever seus acervos em busca de peças que foram adquiridas de formas duvidosas, roubadas nos contextos de colonização em que muitos museus fizeram suas coleções.
Vergès se posiciona em favor da devolução dos itens roubados pelo Ocidente, mas ressalta que a demanda deve vir dos povos de onde os objetos vieram -assim como deve vir deles a resolução sobre o que fazer com as obras uma vez devolvidas.
“Não é problema do Ocidente a forma como os povos do Sul global lidam com seus objetos roubados”, diz Vergès. “Foi o Ocidente que impôs essa ideia de um patrimônio que precisa ser conservado. Precisamos decidir o que é sagrado, o que queremos preservar para sempre e o que pode se perder com o fluxo da vida.”
Ela dá o exemplo de estátuas de povos hindus, que foram tiradas de seus contextos em que recebiam oferendas de flores, comida e banhos de leite e se tornaram pedaços de pedra em museus europeus. “A instituição transforma profundamente o objeto. A partir daquele momento só pode olhar, não tocar, nem fazer rituais. É necessário se perguntar se ainda queremos um museu assim.”
Vergès é autoridade quando o assunto são as instituições coloniais. Francesa criada na ilha de Reunião, “Decolonizar o Museu” é o segundo livro que ela lança no Brasil, sendo o primeiro “Um Feminismo Decolonial”, em que ela compara o movimento das mulheres aliado ao antirracismo, anti-imperialismo e anti-capitalismo com aquele estritamente branco e europeu.
Embora o título deixe em aberto a possibilidade de descolonizar o museu, é bom que o leitor não chegue desavisado. Vergès não perdoa a instituição.
“Eu não acredito que a estrutura do museu em si possa ser descolonizada, porque ela foi construída a partir da ideia de que a Europa e o Ocidente têm o direito de roubar o resto do mundo, de serem os guardiões dos tesouros da humanidade”, diz a autora.
O que ela propõe é um pós-museu. E, segundo ela, o nome fica só pelo apego que as pessoas têm a ele.
Para a autora, a relação com o público precisa ser revista e ressalta que, nos moldes de hoje, são poucos os verdadeiramente bem-vindos em um museu. Existe uma etiqueta específica nos museus, diz ela, uma etiqueta bem burguesa. E isso também deve ser revisto.
“A relação com o público precisa ser repensada”, afirma. “Devemos rever se podemos, por exemplo, descansar no museu ou se é um lugar de ficar de pé por horas e horas. Se podemos falar alto ou se temos que falar baixinho”, diz, aos sussurros.
Para Vergès, mudanças recentes, como a preocupação em ampliar os artistas não brancos e mulheres em acervos ou mesmo fazer nomeações afirmativas na direção e no corpo curatorial de museus, não devem ser desprezadas. É o caso da 35ª Bienal de São Paulo, que mirou uma proposta curatorial sem hierarquia entre seus integrantes e com três de quatro curadores negros.
Mas, diz a autora, isso por si só não transforma a estrutura dos museus, ao mesmo tempo que não deve ser desprezado. “Nem toda situação em que uma pessoa não branca ascende nas artes é uma pacificação ou uma migalha. Temos que apoiar isso”, diz. “Mas o modelo, por exemplo, de uma bienal visa a atender ao mercado. Mesmo as bienais do Sul global são publicidade.”
BÁRBARA BLUM / Folhapress