SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1994, a eleição do republicano Rudolph Giuliani para a prefeitura de Nova York, com a promessa de combater as gangues de rua sitiando latinos em guetos urbanos afastados do Centro, foi determinante para que estreasse na Broadway “A Bela e a Fera – O Musical”, adaptação do desenho da Disney, primeira produção do estúdio para os palcos, possibilitada quando a política de Giuliani começou a surtir efeito.
Isso porque o estúdio desejava uma mudança no público que frequentava os teatros. Assim, saíram os artistas experimentais e underground e chegaram as famílias de classe A, sedentas para conferir a história que haviam adorado nos cinemas apenas três anos antes.
Esse processo foi determinante para alterar as produções nos teatros nova-iorquinos. Ao menos é o que acredita o diretor Charles Möeller. Desde produções dos estúdios Disney até títulos que no Brasil ganharam a alcunha de “clássicos da Sessão da Tarde”, sucessos do cinema começaram a invadir os palcos.
“O público mudou nos últimos 10 anos. Agora ele dita o que quer ver, e houve esse aumento na quantidade de adaptações do cinema para os musicais porque o público fala cada vez menos inglês, tem um repertório cinematográfico menor e é mais fácil se relacionar com títulos conhecidos”, diz.
O diálogo entre as duas linguagens não é novo. Desde a década de 1950, Hollywood se abastece do material que sai dos palcos americanos. Contudo, a relação agora é outra. São os palcos que pedem pelo material que antes estavam apenas nas telas.
Se entre as décadas de 1970 e 1990 eram dramas de época, como “Sunset Boulevard”, e romances musicais, como “Footlose”, que ganhavam nova chance nos palcos, agora são sucessos como “Homem Aranha” que têm a chance de arrecadar mais alguns milhões de dólares.
Entre 2010 e 2023, a Broadway recebeu adaptações de todo o tipo. Foram desde filmes como “Beetlejuice – Os Fantasmas se Divertem”, “As Pontes de Madison”, “Ghost”, “Uma Linda Mulher”, “Meninas Malvadas”, “Moulin Rouge”, “Escola do Rock”, “O Diabo Veste Prada” e “Frozen”, até o desenho animado “Bob Esponja.”
“É um tipo de musical que tem tendência ao fracasso”, acredita o diretor Gustavo Barchilon. “Eu tenho certo preconceito com essa quantidade de adaptações, e elas geralmente não dão certo. Shrek foi um fracasso, Uma Linda Mulher foi um fracasso, Homem Aranha tentou copiar as piruetas do filme e quase matou o elenco”, diz.
Estes espetáculos, entretanto, brilham os olhos não só dos produtores, mas da equipe criativa. “Homem Aranha”, que viveu sucessivos acidentes com o elenco graças às coreografias que previam voos na sala de espetáculo, teve a trilha composta por Bono Vox e The Edge, do U2.
Crítico do gênero, Barchilon, entretanto, é um dos realizadores que assinarão as próximas adaptações que estreiam no Brasil em 2023. O diretor, que assinou títulos como “Barnum – O Rei do Show” e “Ponto a Ponto”, com Luiz Fernando Guimarães, responderá por “Bob Esponja – O Musical”, que estreia no Rio.
“É o único título que eu faria”, diz. “A destruição também é criação, então vamos destruir essa estrutura de cartoon e pegar apenas as referências mais fortes para criar em cima disso. Não vamos fazer o que o desenho faz.”
Com músicas de mais de 20 compositores, entre eles estrelas do quilate de David Bowie, Cyndi Lauper, John Legend e Steven Tyler, “Bob Esponja” abre a temporada de adaptações que conta ainda com “Beetlejuice” e “O Jovem Frankenstein”, no Rio, e “Uma Linda Mulher” e “O Rei Leão”, em São Paulo.
Já em cartaz, estão “O Guarda-Costas”, baseado no filme de 1992, “Bonnie & Clyde”, do filme de 1967, e “Once”, inspirado na película de 2007.
Em São Paulo, estão previstas novas temporadas de “A Cor Púrpura”, que bebe do filme de 1985, dirigido por Steven Spielberg, e “Tatuagem”, a única adaptação de um título brasileiro, o filme homônimo de Hilton Lacerda, de 2013.
“Os produtores geralmente imaginam que comprar títulos blockbuster é um caminho fácil de chamar o público, o que eu acho ingênuo”, diz Möeller, responsável, ao lado de Claudio Botelho, pela montagem de “Jovem Frankenstein”, baseado na obra de Mel Brooks de 1973, que chegou à Broadway em 2007, adaptado pelo próprio Brooks.
Essa onda, entretanto, pode significar mais do que uma tendência de mercado. No Brasil, é visto como um movimento de buscar o público que ainda não retornou após os anos de pandemia. Ao menos é o que acredita Ricardo Marques, diretor da 4ACT Produções e co-diretor da montagem brasileira de “O Guarda-Costas”, em cartaz no Teatro Claro.
Marques, que já trouxe ao Brasil títulos igualmente cinematográficos, como “Ghost” e “Fame”, também compôs a equipe criativa da primeira montagem inglesa do musical baseado no hit dos anos 80 “De Volta para o Futuro”. A opinião do produtor ecoa.
Para Tadeu Aguiar, que assina “Beetlejuice” e “A Cor Púrpura”, o fato de a Broadway ser uma indústria que busca o retorno garantido reflete na cabeça de produtores brasileiros, que não têm segurança de apostar em um título inédito brasileiro, como sua adaptação do conto “Fausto” no universo do futebol, com músicas de Guto Graça Mello e texto de Eduardo Bakr.
Pós-Doutor e pesquisador com especialização em teatro musical, Jamil Dias endossa a visão de Aguiar.
“O produtor aposta no que parecer mais seguro, como filmes que fizeram sucesso num nicho. No Brasil, a matemática é mais simples. É a busca do que vai acender a curiosidade do público médio que pode pagar ingressos caros.”
Mas esse movimento, acredita o pesquisador, é passageiro. Se o Brasil viveu a febre das biografias, é natural que viva agora a das adaptações vindas dos Estados Unidos e da Inglaterra, até que passe a adaptar suas próprias histórias.
“É preguiçoso, porque em termos de biografia, a trilha já está pronta. É só encaixar uma historinha ali no meio e pronto. Com os filmes, acontece o movimento contrário. Claro que há exceções.”
Uma delas, diz, é “Tatuagem”, dirigida por Kleber Montanheiro, que abocanhou uma indicação ao APCA de Melhor Direção em 2022.
“Tatuagem”, contudo, foi ponto fora da curva, e produzido quase de forma independente. Se antes faltavam compositores para formar uma cena do teatro musical brasileiro, agora falta o patrocínio.
Montanheiro alerta para o fato de o dinheiro geralmente ser direcionado a obras importadas porque está concentrado na mão de profissionais de marketing que não necessariamente conhecem teatro. É um problema que determina o cenário cultural na visão de Jamil Dias.
“Se o patrocinador só quer ver musical de filme americano, é esse o panorama, e acho que perdemos a produção do nosso próprio teatro musical. Mas ao menos dá trabalho para os atores.”
BRUNO CAVALCANTI / Folhapress