SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Um dos palhaços mais conhecidos do país entre as décadas de 1920 e 1930, Piolin teve a ideia de vestir atrizes com camisas de times famosos de São Paulo. Era artimanha para atrair público ao Circo Alcebíades, que havia acabado de chegar ao largo do Paissandu, região central de São Paulo, em 1926.
O sucesso dos torneios curtos, que duravam um final de semana, foi captado pela revista A Cigarra e retrata os espaços que o futebol feminino, mesmo que representado de forma alegórica, encontrava para aparecer nas primeiras décadas do século 20.
“A gente pode acompanhar a partir da década de 1920 que a importância desses espetáculos é a itinerância do circo. Quem nunca tinha visto uma mulher jogando futebol vai ver pela primeira vez dessa forma”, afirma a historiadora do esporte Aira Bonfim.
Mestre em história, política e bens culturais pela FGV-RJ (Fundação Getúlio Vargas do Rio de Janeiro), ela é autora de “Futebol Feminino no Brasil: entre festas, circos, subúrbios, uma história social (1915-1941)”, publicado de forma independente e à venda pela internet.
A obra investiga como as mulheres começaram a praticar a modalidade até o momento em que o governo federal baixou uma proibição que seria revogada apenas em 1979.
Em uma longa pesquisa feita em publicações da época, ela encontrou 13 circos que tinham como uma das atrações a disputa do que era chamado de “football feminino”.
“O futebol forjava-se como interessante atrativo fora das quatro linhas. Foi um recurso usual de circenses como os Irmãos Queirolo [circo que se apresentava no Rio] para garantir plateias sempre cheias durante suas turnês”, escreve Aira.
O atrativo de ver mulheres praticando o esporte também foi adotado por companhias de teatro de revista. O circo traria maior visibilidade porque, como registra a autora, historiadoras como Ermínia Silva e Daniele Pimenta afirmaram que era essa a forma de expressão artística que maior público mobilizou até meados do século 20.
“A gente consegue localizar esse trânsito de companhias que vão apresentar futebol feminino, e elas estão chegando ao Norte e ao Nordeste, em cidades pequenas e grandes. Pense nessa divulgação, nessa popularização do esporte que acontece de forma muito natural no masculino, mas ocorre no feminino graças a esses espetáculos”, observa Aira.
Ela escreve que a imagem de mulheres “vestidas de jogadoras e praticando um jogo de futebol era cena incomum para espectadores curiosos”. E tanto o teatro de revista como o circo queriam explorar a emoção da plateia que comprava ingressos.
A historiadora lembra ter mergulhado nessa pesquisa para preencher uma lacuna. Há poucos registros do passado do futebol feminino no Brasil. Não existe vídeo ou foto do primeiro gol marcado pela seleção brasileira na história das Copas do Mundo, em 1991. O que há apenas é o relato oral da artilheira Elane e de suas companheiras.
Imagine-se, então, em que circunstâncias as mulheres começaram a praticar o esporte no país.
“A primeira coisa é pensar como o futebol chegou a elas, como as meninas desceram das arquibancadas para experimentar o jogo. Isso não acontece de forma provocada pelos dirigentes. É por iniciativa delas. O futebol era um esporte masculino feito para outros homens”, ressalta.
Uma das dificuldades que encontrou na busca por informações foi descobrir se o que a imprensa definia como “futebol feminino” era realmente composto apenas por mulheres. Poderiam ser jovens da alta sociedade desfilando pelo campo em um festival esportivo, algo comum nos tradicionais clubes da época. Poderia ser uma partida de homens com a participação de uma garota. Poderia ser até uma disputa de rapazes com roupas de senhoras.
A chegada do futebol feminino ao circo ofereceu registros confiáveis, mesmo que pudessem não ser eventos competitivos.
Aira relata que no bairro do Cachambi, no Rio de Janeiro, em 1923, o Sport Club Celeste promoveu um jogo realmente disputado por “senhoritas” e apitado por uma árbitra chamada Linda Carvalho. Antes disso, em 1921, evento entre moradoras dos bairros Tremembé e Cantareira, na zona norte de São Paulo, é considerado um marco inicial. Mas a autora afirma que essa não foi a estreia da modalidade no Brasil.
“A ausência de documentação da prática de futebol tem inviabilizado o futebol de mulheres há décadas”, escreve.
Era uma época em que publicações como A Gazeta de São Paulo veiculavam artigos defendendo a presença feminina nos gramados. Isso logo mudaria com argumentos que depois seriam usados para proibir a prática por meio de decreto governamental: não se tratava um esporte para mulheres; o futebol deformaria o corpo; elas não haviam sido criadas para esse jogo etc.
Jornais e revistas se referiam muitas vezes às mulheres como “belo sexo” ou “Eva”.
Fora dos clubes mais conhecidos, cada vez mais reticentes em permitir a participação de mulheres em seus festivais esportivos, o futebol feminino começou a se tornar popular nos subúrbios, indo além das atrações circenses.
“Esses times suburbanos tinham uma entrada muito maior do que a gente [do futebol feminino] tem hoje dentro da comunicação esportiva. O [hoje extinto] Jornal dos Sports fala sobre isso, [no Rio], outras publicações também e incentivam os torneios no subúrbios. Começa um protagonismo”, observa.
Ele afirma isso para lembrar quanto a proibição, decidida durante o governo Getúlio Vargas, não impediu que mulheres continuassem a jogar. Mas sempre sem um espírito de competição. Quando questionadas, diziam sempre tratar-se de algo “beneficente” ou de “exibição”.
Mas a ausência de competições atrapalhou o desenvolvimento da modalidade por décadas e ainda pode ser sentida hoje em dia.
Diferentemente do que aconteceu em outros países, como a Inglaterra, no Brasil as mulheres não foram barradas simplesmente na esfera esportiva, pela federação nacional. Bastaria, nesse caso, organizar campeonatos fora do guarda-chuva da organização para preencher o vazio. No Brasil, foi iniciativa do governo.
“O prejuízo é muito grande. A menina não vai aprender [futebol] na escola e vai se distanciar cada vez mais. Isso se torna uma realidade no sentido de que ela nunca veria outra mulher jogando futebol.”
A OBRA
Título: Futebol Feminino no Brasil: entre festas circos e subúrbios: uma história social (1915-1941)
Autora: Aira Bonfim
Editora: publicação independente
Páginas: 352
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ALEX SABINO / Folhapress