BAGÉ, RS (FOLHAPRESS) – Bagé, a 370 quilômetros de Porto Alegre, é uma cidade-símbolo do povo gaúcho. Situada em meio ao bioma pampa, o município de 121 mil habitantes tem na pecuária sua maior atividade econômica. Mas, há 15 anos, a cidade se movimenta ao receber diretores, atores e outros profissionais do audiovisual, que vão até o sul do Rio Grande do Sul para o Festival Internacional de Cinema da Fronteira.
A edição mais recente, que começou na quarta (23) e se encerrou na noite de sábado (27), teve como homenageados a diretora argentina Lucrecia Martel e o ator gaúcho Flávio Bauraqui, que estiveram na cidade ao longo da programação em bate-papos e sessões especiais.
“A Transformação de Canuto”, de Ariel Kuaray Ortega e Ernesto de Carvalho, que se passa em uma comunidade mbyá-guarani entre o Brasil e a Argentina, venceu o prêmio de melhor filme. A coprodução entre Cuba e Venezuela “Sotavento”, de Marco Salaverría Hernández, venceu a mostra internacional de curtas, e “Os ausentes”, de Jeferson Vainer, venceu a mostra regional.
Sete longas-metragens e 51 curtas sul-americanos estavam em competição. O evento teve mostras adicionais nas cidades de Santana de Livramento e Rivera, no Uruguai.
“O festival é resultado da ausência de um espaço de fruição de um audiovisual local”, diz o cineasta Zeca Brito, idealizador do festival. “Ao não existir um espaço onde a gente pudesse se ver, se cria esse espaço”.
Essa iniciativa é fruto recente do rico ambiente cultural da cidade, que inclui o trabalho de vários músicos nativistas gaúchos e o legado de pintores e gravuristas do Grupo de Bagé.
A tradição artística é decorrente da história conturbada da fronteira gaúcha, habitada originalmente por charruas e minuanos, e depois dominada por espanhóis e portugueses. “A nossa região é feita a ferro e fogo. Tudo foi delimitado em guerra, foi tudo na espada”, afirma Diones Franchi, mestre em história e coordenador da Galeria Municipal de Arte Edmundo Rodrigues.
O historiador explica que a fundação de Bagé remonta ao começo do século 19, com um acampamento do exército imperial que rumava a Montevidéu para apoiar a monarquia espanhola contra uma insurreição.
Enfrentando um inverno rigoroso, o líder das tropas deixou para trás um grupo de mulheres, crianças, doentes e alguns poucos soldados. Com a construção de um armazém e uma capela, nasceu ali uma vila e, com o tempo, um polo econômico.
Os estancieiros mandavam seus filhos para estudar em universidades francesas, e eles retornavam trazendo consigo a bagagem cultural de uma Europa em efervescência.
Bagé teve um dos primeiros cineteatros do país, o Theatro 28 de Setembro, que recebeu em 1897 projeções do cinematógrafo desenvolvido dois anos antes pelos irmãos Lumière. Em 1917, um problema técnico durante a exibição de um filme causou um incêndio que se alastrou pelas e destruiu completamente o prédio.
O festival preenche essa lacuna cinematográfica com uma iniciativa de resgate da memória. Parte da mostra ocorre na Vila de Santa Thereza, uma antiga fazenda que tinha um teatro com projetor para os funcionários do campo. Abandonado por décadas, o local foi restaurado e transformado em um centro cultural com apoio da sociedade.
“O festival consegue chegar a 15 anos porque houve uma adesão comunitária, com um espaço para apresentar a produção local, e para aprendizado”, diz Brito, que dirigiu filmes como “A Vida Extra-Ordinária de Tarso de Castro”, de 2017, e “A Arte da Diplomacia”, do ano passado. “Não é só um evento que acontece por cinco dias. Através da parceria com as universidades da região, a gente tem cursos e oficinas o ano todo”.
Para o cineasta, é preciso repensar Bagé, cidade estratégica para defesa e integração internacional, mas distante de grandes metrópoles, como um polo multicultural. “É uma perspectiva de protagonismo, de um espaço onde as coisas se encontram, e todas as peças do quebra-cabeça se encaixam”.
“Acho muito interessante a discussão sobre a fronteira que não divide, mas é um lugar de encontro”, diz o pernambucano Leonardo Lacca, premiado como melhor diretor no festival pelo longa “Seu Cavalcanti”.
“Esse debate me faz sentir mais latino-americano”, diz Lacca, apontando que a noção de fronteira é longínqua para alguém como ele, morador de Recife. “O Brasil é o único país na América Latina que fala português, e aqui eu vi essa mistura de línguas, como o castelhano e o guarani. A gente ter esses encontros é a maior potência dos festivais.”
CARLOS VILLELA / Folhapress