BRASÍLIA, DF (FOLHAPRESS) – Na mira da revisão de gastos proposta pela equipe econômica, o BPC (Benefício de Prestação Continuada) já foi alvo de recentes investidas para tentar limitar seu alcance, mas o Congresso Nacional não só barrou as propostas como também tratou de emplacar flexibilizações que contribuíram para impulsionar as despesas com a política.
Previsto na Constituição, o programa foi criado em 1993 pela Loas (Lei Orgânica da Assistência Social) e efetivamente implementado em 1º de janeiro de 1996. Ele prevê o pagamento de um salário mínimo a idosos e pessoas com deficiência de baixa renda, com renda familiar de até ¼ do piso por pessoa (equivalente hoje a R$ 353).
Em sua origem, a lei do BPC considerava idosos aqueles que tivessem 70 anos ou mais. Em 1998, a idade mínima para o benefício foi reduzida para 67 anos. Em 2003, já no primeiro governo de Luiz Inácio Lula da Silva (PT), a aprovação do Estatuto do Idoso também cortou a idade mínima a 65 anos, como vigora atualmente.
Entre 2020 e 2021, o Legislativo tratou de ampliar o critério de renda para acessar o benefício, na esteira de uma decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) que considerou o requisito inconstitucional.
Em meio às discussões de contenção de gastos, integrantes do governo defenderam a elevação da idade mínima novamente para 70 anos. A ideia foi vocalizada pelo secretário de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas do Ministério do Planejamento, Sergio Firpo, em entrevista concedida ao jornal O Globo em setembro.
A proposta despertou a reação imediata da presidente do PT, deputada federal Gleisi Hoffmann (PR), que, em publicação nas redes sociais, a classificou de “tremendo retrocesso, uma verdadeira covardia”.
Outros aprimoramentos seguem em discussão, como a adoção de novos instrumentos de combate à fraude e de regras que restrinjam a concessão do BPC a pessoas com deficiência que efetivamente estejam incapacitadas para o trabalho o que excluiria aqueles com deficiências de grau leve ou até moderado.
Há ainda defensores da desvinculação entre o valor do benefício e o salário mínimo, permitindo reajustes menores ao BPC. Pessoas que participam das discussões, porém, dão essa medida como descartada.
O programa entrou na mira da equipe econômica devido à escalada de novas concessões e gastos nos últimos meses. Em setembro, o número de beneficiários beirava os 6,2 milhões (1,2 milhão há mais do que dois anos antes).
A despesa total com o programa deve alcançar R$ 111,8 bilhões neste ano, uma alta real de 15,4% em relação aos R$ 96,9 bilhões repassados em 2023.
Embora houvesse um represamento de pedidos, devido à fila do INSS (Instituto Nacional do Seguro Social), técnicos do governo veem uma situação de descontrole e buscam explicações. As hipóteses vão desde a flexibilização de regras e judicialização até fraudes.
Apesar do quadro, especialistas ouvidos pela reportagem fazem ressalvas às propostas em discussão.
A pesquisadora Ana Cleusa Mesquita, técnica da diretoria de estudos e políticas sociais do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica e Aplicada), diz que o público do BPC é exposto a uma dupla vulnerabilidade (extrema pobreza e limitação ou incapacidade para trabalhar), e o pagamento de um salário mínimo tem impactos positivos na redução da pobreza e da desigualdade, ao mesmo tempo que melhora a condição de vida dos beneficiários.
Mesquita afirma que algumas pesquisas indicam que o repasse responde por 79% da renda das famílias beneficiadas, em média. Em quase metade dos casos, é a única fonte de renda.
“As pesquisas que o Ipea fez ao longo do tempo são convergentes no sentido de que o BPC é extremamente bem focalizado e efetivo na retirada da pobreza, e isso se deve ao fato de estar vinculado ao salário mínimo. Ao contrário de outros programas que aliviam, mas muitas vezes não conseguem tirar da situação de extrema pobreza”, afirma. Para ela, desvincular o benefício do salário mínimo poderia ampliar desigualdades.
Já em relação à idade mínima, alguns especialistas e o próprio governo defendem a mudança para diferenciar o BPC da aposentadoria por idade, que é concedida aos 65 anos, no caso dos homens, mediante contribuição ao INSS. O argumento desse grupo é que conceder um benefício no valor de um salário mínimo sem exigência de contribuição poderia desincentivar a formalização.
Mesquita, porém, afirma que não há nenhuma evidência de que a idade mínima idêntica no BPC e na aposentadoria desincentiva a contribuição. “Acho que é uma questão mais retórica. A questão da contribuição ou não contribuição está relacionada às dinâmicas do mercado de trabalho brasileiro, que tem alguns problemas estruturais, a informalidade entre eles”, avalia.
Ela ressalta ainda que o seguro contributivo do INSS fornece uma proteção maior, que inclui auxílio-doença e salário-maternidade. “Acho pouco racional a pessoa planejar chegar à velhice numa situação de extrema pobreza [para ter direito ao BPC]”, diz.
O ex-presidente do INSS Leonardo Rolim também avalia a idade mínima atual do BPC como adequada. “Se aumentar a idade de aposentadoria, aí sim precisaria subir também [a do BPC]. Mas por enquanto não”, afirma.
Segundo ele, seria mais eficaz diferenciar o valor do benefício, premiando quem contribuiu à Previdência, mesmo que insuficiente para se aposentar. Em sua avaliação, o BPC poderia pagar 70% do salário mínimo, acrescido de dois pontos percentuais a cada ano de contribuição. “É um estímulo maior e cria uma rampa”, afirma.
Rolim também critica a proposta de restringir o BPC de pessoas com deficiência apenas àquelas incapacitadas para o trabalho. Segundo ele, a mudança acabaria punindo indivíduos que se esforçam para superar suas limitações em busca de colocação no mercado de trabalho conduta que, para o especialista, deve ser incentivada.
Em 2021, o governo instituiu o Auxílio-Inclusão, pago a pessoas com deficiência que conseguem exercer atividade remunerada. Elas têm o BPC suspenso e recebem no lugar o auxílio, no valor de meio salário mínimo (hoje equivalente a R$ 706).
“O governo deveria incentivar cada vez mais que elas consigam trabalhar e recebam o Auxílio-Inclusão. Isso é uma forma muito mais inteligente de reduzir o custo do BPC”, afirma.
Para Rolim, no entanto, o maior problema atual são as fraudes. Em seu período à frente do INSS, ele diz que foi identificada uma série de vulnerabilidades, e um sistema foi desenvolvido para mapear as práticas suspeitas, como o uso de uma foto igual para beneficiários diferentes.
“No início do problema, identificamos em torno de 100 mil benefícios com indício de fraude, mas não pudemos fazer a cessação, pois não tinha previsão de suspensão cautelar”, conta. Uma portaria foi editada na tentativa de resolver o impasse, mas a área jurídica do governo entendeu que havia necessidade de uma lei. Rolim acabou deixando o cargo em novembro de 2021 sem que o problema tivesse sido solucionado.
“Hoje, meu chute é que haja pelo menos 700 mil benefícios com forte risco de serem fraude”, diz.
IDIANA TOMAZELLI / Folhapress