Não há imóveis disponíveis em Porto Alegre para tantos desabrigados, diz prefeito

PORTO ALEGRE, RS (FOLHAPRESS) – Das tantas questões urgentes e graves com as quais precisa lidar em meio à tragédia das enchentes, o prefeito de Porto Alegre, Sebastião Melo (MDB), afirma que a mais difícil e prioritária é a definição de como irão morar os cerca de 15 mil desabrigados na cidade.

“Não tem imóveis disponíveis nesse momento”, disse Melo em entrevista à Folha. Ele calcula que o total de pessoas que necessitam de um novo lar na capital -cidade com o maior número de residências atingidas- deve chegar a 30 mil e conta que pediu ao governo federal que comande um plano de habitação para tanta gente.

O prefeito se defendeu das críticas, feitas sobretudo por especialistas, de que houve negligência do poder público na manutenção e falta de investimentos no sistema de proteção contra enchentes da capital. Mas reconheceu que o que tem sido feito não é suficiente e que será necessário “revisitar todo o sistema”.

E diz que contratou a consultoria americana Alvarez & Marsal porque a empresa pode ajudar a captar fundos para a reconstrução, mas sobretudo porque tem a prerrogativa para tal. “Fiz isso porque eu sou prefeito, fui eleito e posso decidir coisas.”

PERGUNTA – Como tem sido a relação com o governo federal, o sr. hoje esteve na reunião com o presidente Lula [PT], que não é do seu mesmo campo político. E com o governo do estado? É mais fácil trabalhar com o governador Eduardo Leite [PSDB] ou com o presidente Lula?

SEBASTIÃO MELO – Nós estamos todos do mesmo lado, quando vem uma crise desse tamanho, se alguém quiser politizar um debate desse, me desculpe, não contem comigo. Vou continuar me relacionando bem com o Eduardo, com o governo federal, temos competências complementares, essa é uma crise de tamanha monta aqui, o município e o estado não dão conta sozinhos.

Acho que tem que envolver os governos, tem que envolver organismos internacionais, fundos, eu agora há pouco estive pela segunda vez com o presidente [Lula], eu disse, olha, presidente, não tem dinheiro para tudo ao mesmo tempo, mas o maior drama agora é você resolver essa questão das pessoas que estão nos abrigos.

Como é que elas vão passar por uma transição até ter uma casa definitiva, porque isso não é uma coisa singela. Eu disse ao presidente agora, que em vez de repassar o dinheiro para as prefeituras, entrar em plano de trabalho, que esse item, habitação, ele ficasse de responsabilidade do governo federal, com o auxílio das prefeituras. Se eu tenho terreno para dar, eu vou dar todo o terreno que tem da prefeitura, não tem problema nenhum, tudo que for possível auxiliar. Agora, o comando deveria ser do governo federal.

Primeiro que nós não temos grandes estoque de imóveis populares grandes hoje no Brasil, Porto Alegre também não tem imóveis populares prontos para atender essa demanda, tem que fazer um chamamento público, colocando pessoas que desejam vender imóveis usados, tentar comprar o maior número de imóveis já prontos, em vez de construir, utilizar todos que já estão novos ou usados, para esse momento de drama que as pessoas não têm família, não têm residência.

Bom, depois tem bônus moradia, o governo federal chama compra assistida, auxílio reconstrução, e tem que aumentar um pouquinho esse valor nessa crise, para ter uma certa atratividade, e aí o cidadão faz essa compra assistida, ele não pode revender esse imóvel, no caso, nós aqui por 5 anos, ele não pode passar esse imóvel para ninguém. Depois tem o aluguel social, tem a moradia solidária, que é você pagar um valor para que as pessoas possam morar com o vizinho.

P. – E a permanência nos abrigos?

SM – Em alguns abrigos a gente vai conseguir estender um pouco mais, mas 30 dias num abrigo, 15 dias, você sabe, começa a ter todo tipo de problema, de convivência, de relações com voluntariado, relações com os agentes. Todos esses conflitos que acontecem na periferia vêm para os abrigos, então não é uma coisa fácil. E muitos abrigos estão instalados, por exemplo, em escolas, que precisarão retomar as aulas, elas terão de ser transferidas. Então, para mim, a governança mais complicada de todo esse processo, que vai demorar, é essa transição até a pessoa ter uma moradia.

P. – O governo federal se comprometeu a atender essa demanda?

SM – Essa demanda não é só minha, tinham no mínimo dez prefeitos da região metropolitana [de Porto Alegre], eu expressei isso, mas essa é uma expressão também de todos os prefeitos. O [ministro da Casa Civil] Rui Costa concordou com isso, o presidente concordou. Agora, não tem imóveis disponíveis nesse momento para atender as milhares de pessoas que estão desabrigadas no Rio Grande do Sul. Esses 15 mil que estão nos abrigos [em Porto Alegre] vão se transformar em 30 mil, porque no mínimo tem mais 15 mil que estão morando de um jeito ou do outro, que também estão sem casa e também não tem como voltar para suas casas.

Então, se eu falar de 30 mil pessoas, imaginamos o seguinte, tá falando aí no mínimo de 10 mil moradias, 8.000 moradias só em Porto Alegre, e tu não tem esse estoque nem com aluguel social, então, vamos ter que criar aí espaços solidários, espaços em que você pode acolher da forma possível, estou levantando prédios que hoje estão destinados para algumas coisas, seja federal, estadual, municipal, que possa acolher provisoriamente.

Para mim, essa é a governança mais urgente. Tem outro pilar que é econômico, porque muitas empresas foram atingidas, de todos os tamanhos. Tu tem o pilar social, não adianta só ter casa, essa pessoa já não tinha renda, tem muita gente do CadÚnico nesses abrigos, são pessoas com baixíssima renda, então, é bastante complexo, não se resolve assim da noite para o dia.

P. – E sobre a possibilidade de se erguer uma cidade provisória para 10 mil habitantes na zona norte da cidade, o que há de concreto em relação a isso?

SM – Às vezes a comunicação… as pessoas não entendem… o que eu disse, continuo dizendo, que a cidade provisória, a cidade solidária, pode se dar em vários terrenos, sendo que o maior terreno está na zona norte. Agora, aquele terreno não tem como acolher 10 mil pessoas. Não existe espaço em Porto Alegre para fazer um local com 10 mil pessoas, não existe, então essa informação é totalmente torta.

P. – A prefeitura tem recebido críticas de especialistas de que teria havido negligência na manutenção do sistema antienchente da cidade, o que sr responde?

SM – Primeiro, eu acho que só tem críticas na democracia, e muitos desses que estão criticando agora talvez não tenham falado nada durante 30 anos, 20 anos sobre esse tema. O sistema de contenção de cheias de Porto Alegre veio na década de 1960, e foi concebido pela enchente de 1941, profundamente superada pela de agora.

Nós tivemos 3 diques [com maiores problemas], um do Gravataí, que extravasou, outro na zona norte, perto da Arena do Grêmio, e um no coração da cidade, que é no Gasômetro, que também não funcionou. São diques produzidos lá em 1967. Então tem as casas de bomba, que são aquelas que puxam a água da enchente, que devem ter uns 3,5 m, ali do Guaíba, e tem a elétrica em cima, então como [o nível do lago] foi a 5,37 m…

Essas bombas foram concebidas naquela época. Só da redemocratização pra cá nós tivemos dez prefeitos, fora aqueles de 1970 até 1985, então vamos colocar uns 13 prefeitos. Uns fizeram mais manutenção, outros menos, então hoje eu vejo pessoas da oposição, que governaram a cidade por 16 anos, que não fizeram nenhuma manutenção, criticando o governo. Então eu não vou entrar nessa questão, eu acho que nós temos que revisitar todo o sistema.

Tem que ter um grande plano. Não digo isso por causa da crise agora, é um tema em que eu trabalho há muito tempo, temos que começar com a discussão de R$ 5 bilhões para resolver o problema de Porto Alegre. Agora, você não resolve essa questão se não resolver a grande Porto Alegre, ou seja, tem que ter uma governança metropolitana. Porque nós aqui somos atingidos com os rios que chegam, sendo que dois são nossos vizinhos, o Gravataí e o Sinos, e depois tem mais dois que não são daqui e que são abastecidos por outros rios.

Acho que é um debate necessário, mas nesse momento eu tenho que salvar vidas, tenho que reconstruir a cidade. Dentro da reconstrução, tenho que é fazer diferente daquilo que foi feito. Estou muito aberto a esse debate, sem a politização que ele vai ganhar nesse processo, mas eu sou um sujeito de diálogo e quero resolver o problema e não vou nesse momento politizar esse debate.

P. – Na campanha de 2018, o sr criticou o prefeito Nelson Marchezan Jr [PSDB] por não usar uma verba disponível para sistemas contra enchentes. Mas no ano passado sua gestão deixou de gastar 23% do orçamento disponível para esse fim…

SM – Temos o projeto Arroio Areia, de R$ 108 milhões, que para macro-drenagem da cidade, está em fase de execução. Esse projeto está andando, entre outros, falamos de casas de bombas, macro-drenagem, limpeza de arroios e tudo isso, tivemos aqui um investimento bastante razoável nesses três anos. Não é o suficiente.

Quanto à crítica que eu fiz, ele perdeu dinheiro sim, porque a burocracia emperrou. Agora, orçamento no Brasil, meu amigo, é uma coisa que vocês vão lá numa rubrica, pegam a rubrica e dizem, essa rubrica aqui é ela e pronto, acabou, e publicam.

Estou muito consciente da minha responsabilidade, tenho procurado ser um prefeito pé no chão, vou continuar desse jeito, e posso dizer que nesses três anos, envolvendo drenagem urbana, tratamento de água, toda essa área, nós passamos aqui da casa, entre financiamento e não financiamento, de meio bilhão de reais.

Quando você senta numa cadeira de prefeito, presidente, governador, tu pensou que sentou na cadeira inteira, né? Tu senta num pedacinho da cadeira, não, então, esse é um projeto a longo prazo. Agora, tem que revisitar tudo.

P. – Por que o sr. resolveu contratar a consultoria Alvarez & Marsal?

SM – Eu fiz isso porque eu sou prefeito, fui eleito e posso decidir coisas, foi por isso que eu fiz isso. Eu decidi contratar uma consultoria, umas duzentas me ofereceram, eu decidi contratar essa, se ela for bem, bom, eu decidi, porque eu posso decidir.

Pelo que foi divulgado, nos primeiros 60 dias eles trabalharão pro bono, sem custos para a prefeitura. E depois?

Eu só vou falar disso depois. Tem um cidadão deles que mora aqui, me procurou, procurou também o governo do estado, não sei como é que tá com o governo do estado. Acho que não se resolve com consultoria, ou se resolve sem consultoria, acho que é um processo, eles têm uma experiência, trabalharam em Brumadinho, trabalharam no [furacão] Katrina… Eu estou buscando soluções, não posso ficar aqui de braço cruzado esperando soluções. Contratei porque quem é eleito tem que tomar a decisão.

P. – De que modo o senhor acha que uma empresa especializada em recuperação judicial, reestruturação de empresas, pode auxiliar o poder público num momento desse?

SM – Veja o seguinte, primeiro, ela tem experiência, ela trabalhou já sim nessas questões, e segundo, nós precisamos captar fundos também para poder fazer muito, né, não vou recuperar a cidade só com o orçamento municipal, só com as parcerias públicas, então aqui tem uma oportunidade também de nós buscarmos recursos de fundos internacionais e outros, então nós vamos focar em todas as opções para poder recuperar a cidade, então tem também um foco muito nisso também, viu, tá bem?

P. – Pensando um pouco à frente, o sr. acha que lidar com essa crise pode facilitar ou dificultar a sua reeleição na eleição de outubro?

SM – Não vou tratar de eleição, estou tratando de salvar vidas, recuperar a cidade, para mim o que menos interessa agora é a eleição. Eu sou prefeito eleito da cidade, tenho mandato até o final do ano e tenho que cumpri-lo rigorosamente. Para mim a eleição não está em debate.

Sebastião Melo, 65

Nascido em Goiás, se mudou para o Rio Grande do Sul aos 20 anos. No estado de formou em direito, foi vereador e vice-prefeito de Porto Alegre, além de deputado estadual, sempre pelo MDB. Em 2020, em sua segunda tentativa, foi eleito prefeito da capital gaúcha

FABIO VICTOR / Folhapress

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