RIO DE JANEIRO, RJ (UOL/FOLHAPRESS) – O Enem dos Concursos não irá dispor de uma lista com traços específicos que os candidatos autodeclarados negros e inscritos em cotas devem ter, de acordo com Maria Aparecida Ferreira, uma das coordenadoras do certame e responsável por acompanhar etapas como a heteroidentificação, que avalia a autenticidade da declaração racial em cotas para pretos e pardos.
Ela diz que a percepção sobre raça é subjetiva, mas as bancas serão treinadas para essa função, o que as ajuda a entrar em consenso sobre os candidatos analisados. O concurso tem 420,8 mil inscritos em vagas de ações afirmativas, segundo o MGI (Ministério da Gestão e da Inovação em Serviços Públicos). Com 2,1 milhões de inscritos, o certame é o maior da história.
A heteroidentificação foi usada em todos os concursos do Executivo federal desde 2017, quando o STF decidiu que ela é um instrumento legítimo. É o que aponta um relatório feito pela Enap (Escola Nacional de Administração Pública) e pela UnB (Universidade de Brasília) divulgado em dezembro de 2023.
Desde então, candidatos buscam a Justiça para contestar a avaliação. O levantamento identificou 129 decisões judiciais relacionadas à lei de cotas de 2014. Dessas, 39 eram pedidos de revisão de negativas das bancas. Em cinco casos, os candidatos tiveram o pleito reprovado. Os dados são de processos entre 2017 até outubro do ano passado, disponíveis no site do tribunal.
No Concurso Nacional Unificado, o trabalho é feito pela Cesgranrio, que realiza o certame, e monitorado pela equipe do ministério. Segundo Maria Aparecida, que também é servidora da pasta, o MGI tem uma rede de proteção legal preparada para responder a ações judiciais contra o concurso. Isso inclui possíveis contestações à banca.
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Pergunta – Como implementar critérios objetivos para verificar algo que pode ser subjetivo?
Maria Aparecida Chagas – Toda avaliação é subjetiva e, na questão racial, não poderia deixar de ser, em razão das nuances da miscigenação. A Cesgranrio vai seguir a legislação vigente, em que o critério é o fenótipo das pessoas. O que se faz é discutir para entregar uma decisão de maioria.
P. – O que seria esse fenótipo?
M. A. C. – Não vamos fazer uma listinha de que a pessoa tem que ter tal e tal traço. São questões subjetivas de como alguém lê o outro. A ideia de fazer uma banca com cinco pessoas é chegar a um consenso.
O candidato pode se autodeclarar como quiser, mas a pergunta que deve ser respondida pela banca é ‘essa pessoa deveria estar na reserva de vagas?’. As pessoas sabem, a partir de suas vivências e experiências, quem deve ser.
P. – Há candidatos que se autodeclaram pardos e não são aprovados pelas bancas. Vocês avaliam esses casos?
M. A. C. – Essas questões aparecem, eventualmente. No geral, se a pessoa foi reprovada, ela tem direito a recorrer. Se não passar novamente, tem direito a entrar com ação judicial para se valer do que está afirmando.
Nas minhas experiências em bancas, na dúvida, aprovamos o candidato. Cinco pessoas estão na banca e não chegaram a um consenso, então existe a possibilidade de, em algum contexto, o candidato ser lido como negro.
Acredito que os candidatos não vão para a banca fraudar. Eles têm alguma convicção sobre seu pertencimento. Quando vão fraudar, pode ser visível. Na capacitação, esses casos são trazidos para uma melhor reflexão.
P. – A banca vai saber diferenciar quando a pessoa tem dúvidas de quando ela está lá para fraudar?
M. A. C. – Isso vai fazer parte dessa capacitação. Em todas as que presenciei, esses casos são trazidos para exemplificar os desafios da banca.
Você está querendo uma resposta muito objetiva. Tem pessoas que passam a vida toda sem ter feito uma reflexão sobre a questão racial e em algum momento se dão conta disso. Outras podem se entender como negras, mas viram a esquina e não são mais. Quem realmente tem o direito será beneficiado.
P. – E no caso dos que se autodeclaram pardos e descendem de indígenas, com características distintas dos afrodescendentes?
M. A. C. – As pessoas [da banca] sendo daquela região vão ter a melhor avaliação possível daquele candidato.
Quando temos uma política para indígenas, esperamos que eles reconheçam sua etnia. Não estamos aqui para dizer se uma pessoa pode se autodeclarar como preta ou parda, mas, sim, para avaliar se ela tem direito às cotas.
P. – O relatório da Enap mostra que houve 39 decisões judiciais no STF relacionadas a contestações sobre o resultado das bancas. No MGI, há um suporte jurídico caso isso aconteça?
M. A. C. – Temos uma rede de proteção que tem o objetivo de resguardar o concurso de qualquer contestação. Não vai ser diferente em relação aos procedimentos de heteroidentificação, se vierem a ser contestados. A rede é composta pela Advocacia Geral da União.
P. – A banca será realizada nas 220 cidades do concurso. Como é feita essa organização?
M. A. C. – Se houver na cidade candidatos que passaram na fase para a heteroidentificação, daí a banca será instalada.
Quem é responsável pela montagem da banca é a Cesgranrio. A fundação já tem tradição nesse tipo de trabalho e um conjunto de pessoas capacitadas, que vão fazer uma nova capacitação para o CNU.
A Cesgranrio contrata pessoas que têm estudos e trabalham com o tema, geralmente pesquisadores, que são os mais adequados, para dar a capacitação.
P. – Como é a capacitação?
M. A. C. – Não sei dizer como vai ser, porque o programa ainda está sendo construído. Nas que participei, estudamos o que significa miscigenação no Brasil, como é o debate racial no país, diferentes relações raciais. Os causos que estão pulando na mídia também são trazidos à tona.
P. – O MGI também seleciona membros da banca?
M. A. C. – Seria complexo querer abraçar essa etapa do concurso, porque são 220 cidades e, segundo a Cesgranrio, eles têm mais de mil pessoas na banca.
Recomendamos que a banca seja diversa, porque assim tem menor possibilidade de errar, com homens, mulheres, pessoas de diferentes etnias e raças.
P. – A heteroidentificação deve seguir nos concursos públicos?
M. A. C. – Sim, enquanto houver vigência da lei de cotas.
RAIO-X
Maria Aparecida Chagas Ferreira, 49
Diretora de provimento e movimentação de pessoal no MGI e uma das coordenadoras do CNU. Servidora de carreira, é especialista em políticas públicas e gestão governamental. Doutora em sociologia pela UnB, onde participou de bancas de heteroidentificação
LUANY GALDEANO / Folhapress