‘Navio Fantasma’ de Richard Wagner, antissemita que mudou a arte, atraca em SP

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Metade Deus, metade Diabo, Richard Wagner encarnou um demiurgo para vislumbrar o mundo moderno. Nas óperas, os cantores se transformam em anjos da história. Eles anunciam o amor e a morte, conjugam a paixão e o desespero e se voltam à eternidade da tragédia. O gênio do compositor alemão é onipresente, intemporal.

Nas artes plásticas, está nas pinturas de Gustave Moreau, que se inspirava no cromatismo de sua harmonia. Na literatura, está nos ensaios de Charles Baudelaire, que o tinha como um ideal artístico. Na política, vive no antissemitismo, latente na guerra entre Israel e Hamas, ou no nacionalismo do Grupo Wagner, organização paramilitar pró-Rússia batizado em referência a ele.

Mas tudo parte da música. E só enfrentando esse monumento se recolhe os vestígios da quimera que a compôs. Ápice da temporada lírica deste ano, a ópera “O Navio Fantasma”, primeira montagem do compositor no Municipal em dez anos, é o pecado original da obra wagneriana, um ponto de não retorno para a história da arte ocidental.

“Bora curtir”, diz o maestro Roberto Minczuk, deixando a sua sala e se dirigindo ao pódio, minutos antes do ensaio geral. Minczuk sabe que Wagner não distinguia música e gozo. Desde o século 19, as massas se embriagam em melodias como a da “Abertura”, de “O Navio Fantasma”. Batuta em punho, o maestro indica a entrada dos metais.

O naipe inicia um dos momentos mais conhecidos da obra. Naqueles 11 minutos, Wagner costura todos os temas que serão desenvolvidos nas duas horas seguintes. É o resumo da ópera, em que o compositor prepara a plateia para o drama que se segue.

“O desafio é manter a intensidade musical, da primeira até a última nota, porque não há descanso em uma ópera de Wagner”, afirma o maestro.

“O Navio Fantasma”, que estreou em 1843 em Dresden, na Alemanha, rememora uma lenda do século 17, nos tempos das Grandes Navegações. O “Holandês Voador”, como a ópera também é conhecida, era um navio sem capitão condenado a errar pelos mares, sem atracar em nenhum porto.

No libreto, o Holandês, interpretado por Hernán Iturralde e Rodrigo Esteves, jura dobrar o Cabo da Boa Esperança mesmo diante de uma tempestade.

Sabendo da blasfêmia, o Diabo condena o navegador a singrar pelos mares, atracando numa aldeia norueguesa, de sete em sete anos. Numa das paradas, ele encontra Daland, personagem de Luiz-Ottavio Faria, que promete ao Holandês a mão de sua filha, Senta, papel de Carla Filipcic e Eiko Senda. Mas o caçador Erik –Kristian Benedikt e Ewandro Stenzowski–, também quer se casar com a jovem.

Em dado momento, o Holandês flagra Senta e Daland juntos e acredita ter se rompido o pacto de fidelidade que fizera com a sua noiva. Então, o marinheiro volta ao mar e se perde na noite. Avistando ao longe o amado, Senta se mata, para unir sua alma à dele.

“É um conto de terror”, diz o argentino Pablo Maritano, o diretor da montagem. “Preparamos uma história gráfica, aproveitando as representações que os quadrinistas fazem do mar.”

Para ambientar a tragédia, Maritano incorpora a estética da indústria de massa. A natureza, que compõe a paisagem do balneário, se faz abstrata em projeções em tules, dividindo o palco em planos. São formas geométricas em branco, cinza e preto que indefinem a subjetividade dos personagens.

O mar é exceção. Suas ondas não cessam de bater na rebentação. “Wagner vê o mar como o orgulho”, diz Maritano. Como nas tragédias gregas, o sentimento estrutura o libreto. Primeiro, na blasfêmia do Holandês e, depois, no suicídio de Senta.

Além das HQs, emuladas no tracejado das projeções, a linguagem do cinema aparece em filmagens em tempo real. Os cantores interagem com câmeras que sobem e descem das varas cênicas.

Wagner compôs “O Navio Fantasma” quando tinha 26 anos e vivia triste, após ser rejeitado em teatros líricos e acumular dívidas. Durante uma viagem de navio com a mulher, teve a ideia de escrever a ópera que iniciaria sua chamada fase de transição, como define o crítico Lauro Machado Coelho no livro “A Ópera Alemã”.

Nessa obra, Wagner prenuncia o uso do “leitmotiv”, temas musicais associados à ação de cada personagem, que reaparecem no desenrolar da trama. Do mesmo modo, se antecipa o tema da redenção pelo amor, determinante para “Tristão e Isolda”, de 1865. Sobretudo, Wagner introduz a noção de melodia infinita –a orquestra se torna a força motriz do que ele chamaria de drama lírico.

“O Navio Fantasma” é uma ópera de números, e neles o compositor opera suas transgressões. No Coro das Fiandeiras, no segundo ato, palavra e música formam um todo indivisível. O libreto reside na melodia e reafirma o novo papel a ser desempenhado pela orquestra.

Na “Balada de Senta”, Wagner retoma o tema dos marinheiros, o que lembra a ambição totalizante da ópera e potencializa o instante musical.

“O Navio Fantasma” é um tour de force em relação a “Rienzi”, de 1842, e um prenúncio dos quatro épicos do “Ciclo do Anel”. Para a música, Wagner estabeleceu um novo padrão composicional, inaugurando, depois de sua morte, o wagnerismo. Mangold, Born e Weingartner, vultos agora desconhecidos, imitavam a arte do autor de “Parsifal”.

A pintura simbolista se influenciou pelo cromatismo das composições de Wagner. As linhas melódicas estabelecem um fluxo contínuo, em que os temas retornam com novas cores. Do mesmo modo, o pincel de Moreau, autor de “A Esfinge Vencedora” e “Vozes da Noite”, emendava uma cor à outra, encadeando os símbolos dispostos nas telas.

Na literatura, Baudelaire, o poeta que inaugurou a modernidade, manteve uma correspondência com o compositor, escrevendo, em 1861, o livro “Richard Wagner e ‘Tannhäuser’ em Paris”, sobre a estreia da ópera na capital francesa. Na ocasião, o autor foi uma das únicas pessoas na plateia que não vaiou a apresentação. Ao contrário, acreditava que a arte de Wagner tinha muito em comum com a sua poesia.

Apesar do gênio artístico, Wagner foi um canalha. Aplicava golpes, tinha casos com as mulheres dos amigos e era antissemita. Em 1950, publicou um panfleto intitulado “O Judaísmo na Música”, em que acusava judeus de criarem música apenas pelo benefício comercial, imitando a arte estrangeira.

Não por acaso, era o compositor preferido de Hitler e ainda é lembrado pelos antissemitas dos tempos de guerra entre Israel e Hamas. Como pano de fundo, Wagner era um cultor da ideologia “völkisch”, a cultura popular que acreditava numa Alemanha habitada por camponeses de sangue germânico. Tanto que os temas de suas óperas contam a história de lendas e mitos nórdicos.

Em tempos recentes, esse ufanismo se tornou o alicerce do Grupo Wagner, tropa paramilitar que atua no território ucraniano, defendendo os interesses russos, e cujo líder, Ievguêni Prigojin, morreu numa queda de avião em agosto. Sua ideologia tem inspiração neonazista. Ao contrário do que ocorre em outros setores da arte, onde imperam ondas de cancelamento, a comunidade operística separou o canalha do compositor.

Foi um processo. Em 1938, a música de Wagner foi banida de Israel. O tabu, que durou décadas, foi superado pela atuação de diferentes maestros. Nos anos 1980, Zubin Mehta foi vaiado ao anunciar que a Filarmônica de Israel interpretaria uma peça de Wagner. “Israel é uma democracia. Todo tipo de música deve ser executado”, disse ele, na ocasião.

Mehta foi interrompido por um sobrevivente do Holocausto que subiu a manga de sua camisa e mostrou o número do campo de concentração tatuado no braço. Em 2001, Daniel Barenboim, que é judeu, regeu Wagner em um concerto. O maestro chegou a debater com algumas pessoas da plateia. A maioria aplaudiu a interpretação.

“Barenboim foi muito corajoso. Ele não desculpa Wagner pelo antissemtismo, mas sabe que a música tem a sua autonomia”, diz Yara Caznok, estudiosa da obra do compositor. Para ela, a era romântica também ajudou a perpetuação da música de Wagner.

“Havia um mito no Romantismo em que, diante do gênio artístico, tudo se perdoa”, ela afirma. Interpretado nas casas de ópera de todo o mundo, o autor de “O Navio Fantasma” se tornou, ele próprio, um espectro na cultura ocidental. Apregoando a pureza, compunha música impura, distante das explicações matemáticas. Sua música era imprevisível.

“Você não vai ouvir uma ópera de Wagner e sair assobiando a melodia para depois incluir na playlist do Spotify”, afirma Caznok. “Sua música é um fluxo contínuo, em que você se perde em outro tempo e em outro espaço. Para ele, ópera é transformação.”

O NAVIO FANTASMA

Quando 17 de novembro às 20h

Onde Theatro Municipal – pça. Ramos de Azevedo s/n, São Paulo

Autoria Richard Wagner

Elenco Carla Filipcic, Hernán Iturralde, Eiko Senda e Ewandro Stenzowski

Direção Roberto Minczuk e Pablo Maritano

GUSTAVO ZEITEL / Folhapress

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