Negras enfrentam semiescravidão como domésticas, chegam à faculdade e viram poetas

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Parece roteiro de filme a vida de Terê Cordeiro, 70, moradora do Itaim Paulista, na periferia da zona leste de São Paulo.

Obrigada a trabalhar desde criança, ela começou a estudar depois dos 50 anos e, aos 60, cursava o ensino médio em uma escola estadual no período noturno. Para ir às aulas, enfrentava dores fortes na coluna, um problema herdado dos tantos anos de trabalho na roça, como empregada doméstica e operária de fábrica.

Certa noite chovia muito. Terê pegou o ônibus e, ao chegar à escola, toda molhada, lhe disseram que, por falta de professores, não haveria aulas. Ela não se conformou. Tinha ouvido falar que, se houvesse um único aluno na escola, qualquer professor que estivesse por lá seria obrigado a lhe dar aula. Mandou esse recado ao coordenador, ele foi à sala de aula e perguntou à aluna, que estava sozinha, sentada na carteira:

“O que a senhora quer, dona Terezinha?”. Sua resposta foi a seguinte:

“Eu só queria ser ouvida. Passei a minha vida inteira obedecendo e queria mostrar para mim mesma que eu não saí do pouco conforto que tenho na minha casa, enfrentei dor e me molhei inteira para chegar à escola e não ter aula.”

O coordenador pediu a ela, então, que fizesse uma poesia, e Terê escreveu “A sertaneja e o professor”, que começa assim: “O sonho da sertaneja é igual o do professor / ela também sonha um futuro promissor”.

Terê contou essa e outras histórias quando foi procurada pela reportagem para falar sobre a desigualdade racial no envelhecimento, tema de uma pesquisa lançada pelo Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento) em parceria com o Itaú Viver Mais. O estudo evidencia que, para os negros, a velhice é mais difícil do que para os brancos e representa um acúmulo de desigualdades impostas pelo racismo.

A avó de Terê era negra e foi estuprada por um senhor de engenho. “Meu pai nasceu branco”, conta. “Minha mãe, que era negra, era obrigada a lavar os pés do meu pai, era escrava dele”, afirma Terê, que tem a pele morena e diz que, em razão das vivências racistas, reconheceu-se como negra não muito tempo atrás.

Quando ela se mudou de Pernambuco, onde nasceu, para São Paulo, trabalhou como empregada doméstica “e ficava 24 horas por dia à disposição da patroa, uma sinhazinha”. Mãe solo, conseguiu que o filho se formasse em sistemas de informação. Fala orgulhosa dele e de si própria. “Fui analfabeta a vida inteira e consegui passar em uma universidade federal”, afirma Terê, aprovada pelo Enem para um curso de biologia, que não conseguiu cursar em razão dos problemas na coluna.

Em 2018, foi diagnosticada com câncer de mama e está em tratamento pelo SUS. Apaixonada por poesia, já teve textos publicados em coletâneas, e seu grande sonho é lançar um livro solo. Ela faz parte de um grupo de poetas do Sarau 60+, coletivo ligado ao projeto Continuar, que promove ações culturais e educacionais para a terceira idade e é coordenado pela psicóloga e gerontóloga Jeane Silva.

Adelina Martins, 67, também integrante do grupo, narrou à reportagem episódios de racismo que vivenciou desde a infância. “Eu trabalhava na roça quando criança, no interior de São Paulo, e, aos nove anos, tentei ir à escola pela primeira vez, com meus irmãos”, conta. “Era longe e, quando chegamos lá, fomos expulsos por crianças brancas, que jogaram pedras em nós por sermos negros”, diz. “Um professor nos aconselhou a não voltar.”

Ela se mudou para a capital paulista aos 17 e foi trabalhar como babá e empregada doméstica, naquele mesmo esquema de semiescravidão, com uma folga por mês. “Aos 26 anos, consegui convencer uma patroa a me deixar estudar à noite”, afirma. “Mas eu tinha que deixar o jantar pronto e a mesa posta antes e sair, e, quando retornava da aulas, às 23h30, era obrigada a lavar a louça antes de dormir.”

Tinha ainda que concordar em receber metade do salário mínimo. Aos 30, formou-se em curso técnico de contabilidade, prestou concurso e virou funcionária da prefeitura. Com dois filhos, que criou sozinha, fez faculdade privada de pedagogia, para onde caminhava por uma hora, por não ter dinheiro para o ônibus. “Eu tinha uma bolsa de 50% da mensalidade e, mesmo assim, a dificuldade era enorme. Não sobrava dinheiro nem para comprar mistura”, conta ela, que se formou também em serviço social.

Adelina mora com os filhos no Itaim Paulista, em uma casa da CDHU (Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano), que ajudou a construir em esquema de mutirão. Aposentada, ela coordena um projeto de literatura de autores negros, o Sarau Afro, em que a poesia é um instrumento de educação antirracista.

“A maioria das idosas negras são avós que cuidam dos netos e não podem sair. Não estudaram e estão presas em casa porque não têm liberdade financeira”, diz.

Célia de Lima, 75, também poeta do Sarau 60+, falou à reportagem sobre o impacto do racismo em sua vida. Quando tinha quatro anos, sua mãe morreu, e ela e os oito irmãos trabalharam na roça com o pai, no interior de Minas, em um lugar onde não havia escola. Mudou-se jovem para São Paulo, onde foi difícil arrumar trabalho como empregada doméstica. “Além de eu ser negra, era muito magrinha, tinha alimentação precária”, conta ela, moradora de São Mateus, periferia da zona leste de São Paulo.

Trabalhou como doméstica, operária de fábrica e vendedora de Yakult. Já tinha os três filhos quando conheceu as Comunidades Eclesiais de Base, grupos católicos de esquerda que atuaram com projetos sociais nas periferias durante a ditadura militar. “Foi quando comecei a estudar. Entrei na faculdade de pedagogia com mais de 50 anos”, diz. “Antes, tinha vergonha de mim mesma. Mas aprendi a ser mais desenvolvida na fala, e, hoje, o que os outros pensam de mim não me importa.”

LAURA MATTOS / Folhapress

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