Nelson Ned, ícone da música romântica, foi a voz dos excluídos, afirma livro

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Em 1969, quando foi escolher a foto de capa de seu segundo disco, “Tudo Passará”, Nelson Ned fez questão de selecionar uma imagem que o mostrasse por inteiro, e não só seu rosto, como a gravadora havia feito em seu lançamento anterior. “Não tenho o que esconder, sou pequeno e boto pra quebrar!”, ele disse.

O cantor de 1,12 metro de altura lançava seu primeiro álbum de composições próprias. Além da faixa-título, um clássico do cancioneiro romântico latino, ele cantava sobre sua condição em “Tamanho Não é Documento”, sobre tristeza em “Camarim” e sobre solidão e rejeição em “Domingo à Tarde”, entre outras músicas.

A partir dali, cantando em português e espanhol, o artista nascido na cidadezinha de Ubá, em Minas Gerais, fez de sua voz uma das mais ouvidas entre todos os cantores românticos de um país que sempre consumiu muito esse estilo de música. Mais que isso –escreveu canções sobre corações partidos como ninguém, e extrapolou as fronteiras do Brasil para se tornar sucesso em toda a América do Sul, na África lusófona, no México e nos Estados Unidos.

“Ele foi durante mais de uma década, sem dúvida nenhuma, o artista brasileiro mais famoso no mundo”, diz André Barcinski, jornalista e autor da nova biografia do cantor, “Tudo Passará – A Vida de Nelson Ned, o Pequeno Gigante da Canção”. “Ele foi muito mais famoso que o Roberto Carlos durante certa época. Diria que de 1972 até mais ou menos 1985.”

O livro recém-lançado traz a história de um artista que cantou para autoridades de Estado e chefões do tráfico, fez residências em cassinos e hotéis de luxo e se apresentou em igrejas, reuniu multidões de dezenas de milhares no exterior enquanto animava churrascarias no Brasil. Um galanteador que colecionava amantes e sofria com a rejeição e um antagonista carismático que poderia ser carinhoso e feroz na mesma medida.

“Ele cantou para os excluídos, falava com os solitários”, diz Barcinski. “A maioria das músicas dele partem do princípio de que ele não conquistou a mocinha. As composições do Nelson são de alguém que já não conseguiu isso e não tem possibilidade de conseguir. Acho que por isso as pessoas se identificam tanto com ele.”

Barcinski quis escrever sobre Ned depois de entrevistá-lo no fim de 2012, quando ele morava numa casa de repouso em São Paulo, pouco mais de um ano antes de sua morte. Após o encontro, ele diz, a ideia era fazer um documentário, para o qual a pesquisa desembocou no livro lançado agora.

“Fiquei surpreso ao ver o estado financeiro do Nelson”, diz o jornalista. “Estava vivendo numa clínica para pessoas idosas e enfermas paga pelas irmãs. Já tinha sofrido dois derrames, estava mal de saúde. Durante uns 25 minutos, ele respondeu as perguntas, e depois começou a divagar, falar coisas sem nexo.”

Era um retrato da decadência que Ned viveu a partir dos anos 1990, depois de um período afundado em drogas, álcool e remédios para aliviar seus problemas de saúde. Nas décadas anteriores, o cantor teve uma vida de luxos, prazeres e excessos, um bon vivant que nunca abandonou as noitadas.

Desde seu encontro com Ned, Barcinski entrevistou instrumentistas de suas bandas e discos, familiares, amigos e pessoas da música que conviveram com o artista. Também teve acesso a uma longa entrevista dada pelo cantor na década de 1990 ao jornalista Paulo César de Araújo, autor do livro “Eu Não sou Cachorro, Não”.

Ele conta como Ned tinha um amor próprio quase inabalável, mas sofria com as consequências de como a sociedade o encarava por causa do seu tamanho –especialmente em relacionamentos amorosos. É uma situação retratada em “Tamanho Não é Documento”, mas que deixou marcas em muitas de suas músicas.

“O ressentimento, ser deixado para trás e ignorado porque as pessoas não prestavam atenção em sua alma e personalidade, e só na questão física, é algo que eu nunca vi ser abordado desse jeito em lugar nenhum”, diz Barcinski. “‘Tudo Passará’ pode ser uma música sobre alguém que foi deixado que foi largado, mas pode ser também sobre alguém que foi largado pelo fato de ser portador de nanismo.”

O maior sucesso de Ned, a música, regravada em diversas línguas, foi escrita após uma entre suas várias experiências com garotas de programa. “Apesar de várias pessoas terem gravado, na voz dele, ela ganha um significado especial. Deixa de ser sobre um amor fugaz e passa a ser a história [real] da prostituta que ele amava e que o largou basicamente porque achava ele feio.”

É um sentimento expressado no vozeirão de Ned, que encantou plateias que sequer sabiam de seu tamanho. O livro narra a comoção que ele causou quando foi recebido por 3.000 pessoas no aeroporto em Luanda, cantou para 80 mil em Bogotá ou lotou o Carnegie Hall, mítica casa de shows em Nova York. Aquelas plateias nunca tinham visto o corpo do brasileiro.

“Pelas descrições de todo mundo, acredito que tenha sido uma coisa muito chocante e que realçou essa conexão do Nelson com o público”, diz o jornalista. “As pessoas ouviam aquela voz estrondosa, superafinada, forte e máscula, e depois viam uma figura de um homem baixinho. Viam ele como um milagre da natureza, queriam tocar e estar perto dele.”

No texto “Em Bogotá”, incluído na coletânea “O Álbum Branco”, a famosa escritora americana Joan Didion fala sobre uma visita à cidade colombiana que, em 1973, tinha as ruas “banhadas pela névoa, pela luz delicada e brilhante e pela voz conhecida e amplificada de Nelson Ned, um anão brasileiro cujos álbuns tocavam em todas as lojas de discos”.

Mas no Brasil ele não tinha o mesmo reconhecimento nem a mesma popularidade. Apesar de apoiado por amigos apresentadores de TV como Chacrinha e Silvio Santos, Ned aparecia na imprensa mais nas páginas de famosos do que nas de cultura. Ao longo da carreira, colecionou embates públicos com gente como Ronaldo Bôscoli, compositor, produtor e marido de Elis Regina.

Ned era representante de uma música romântica popular, tida como brega, pobre esteticamente e alienada, em comparação com a tropicália, a bossa nova e os artistas mais engajados politicamente em meio à ditadura militar. O mineiro dizia que gente como Nara Leão e Chico Buarque “exploravam o pobre” em suas músicas, por terem sido criados na “nata do intelectualismo” e não conhecerem verdadeiramente a realidade social sobre a qual cantavam.

“Ele queimou todas as pontes que tinha com a música brasileira, com a mídia. Não estava nem aí”, diz Barcinski. “Ele diz, ‘lotei o Carnegie Hall duas vezes na mesma noite, e vocês não falaram nada, e quando a bossa nova foi lá com dez artistas, tem mil matérias. Por que vocês não escrevem sobre mim?’ Ele tinha razão.”

Até o próprio Chico Buarque, em uma entrevista, comenta o sucesso de Ned, dizendo que ele é o cantor mais conhecido em Cuba e em toda a América Latina. “Faço música para grandes centros. No Nordeste ou no Sul talvez eu não exista. Pode ser que haja dois Brasis, e eu não posso dizer que este Brasil que me conhece seja melhor ou pior.”

Talvez essa relação complicada com a mídia e a elite da MPB ajude a explicar o pouco conhecimento em torno de um brasileiro com 45 milhões de discos vendidos, o primeiro artista latino a vender um milhão de cópias nos Estados Unidos. Mas ela também reforça sua posição como a voz dos excluídos e rejeitados, uma expressão forjada na dor, como diz uma frase de Ned reproduzida no livro.

“Não creio em criação sem sofrimento, não creio em arte sem sofrimento. A arte é produto do sofrimento, ela é filha do sofrimento. Tem uma frase em francês, num livro que eu estava lendo, que diz ‘o sofrimento é o mestre do homem’. No meu caso, a música sempre foi consequência de uma causa, que foi a dor.”

TUDO PASSARÁ – A VIDA DE NELSON NED, O PEQUENO GIGANTE DA CANÇÃO

Preço: R$ 79,90 (276 págs.); R$ 39,90 (ebook)

Autoria: André Barcisnki

Editora: Companhia das Letras

LUCAS BRÊDA / Folhapress

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