SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – A tortura branca consiste em submeter os prisioneiros a confinamento solitário durante semanas, meses ou até anos, sem poder distinguir se é dia ou noite, em silêncio absoluto, privados de qualquer contato com familiares ou advogados.
Os detentos são vendados toda vez que saem da cela para interrogatórios. Eles só têm a sensação tátil do chão, das paredes e do cobertor áspero da cela. O único cheiro vem da privada imunda.
A ativista iraniana Narges Mohammadi, vencedora do prêmio Nobel da Paz em 2023, passou 135 dias em prisão solitária ao longo de seus quase 20 anos de encarceramento, entre idas e vindas. Foi a partir dessa experiência que Mohammadi, ainda presa em Teerã, resolveu fazer o livro-denúncia “Tortura Branca Entrevistas com Prisioneiras Iranianas”, lançado no Brasil pela editora Instante.
O livro reúne 13 relatos de tortura branca de mulheres que ainda estão detidas ou foram libertadas recentemente no Irã, a maioria ativistas políticas e defensoras de direitos humanos.
“É impossível imaginar como não ver o sol, não sentir a brisa na pele e ter ao seu redor apenas silêncio ininterrupto abalam a vontade de lutar e continuar vivendo”, escreve Mohammadi. “Às vezes, as bolhas das feridas do confinamento solitário estouram, às vezes infeccionam, às vezes queimam e, às vezes, o medo vaza em minhas veias. Ainda não existe fim para as feridas invisíveis e não curadas.”
Mohammadi recebeu o Nobel da Paz por “sua luta contra a opressão das mulheres iranianas e sua batalha para promover direitos humanos e liberdade para todos”. Mohammadi já foi presa 13 vezes e condenada a um total de 31 anos de reclusão.
Ela está na famigerada prisão Evin, onde o regime do aiatolá Ali Khamenei mantém muitos dissidentes políticos, alguns deles sem julgamento há anos. Em agosto do ano passado, Mohammadi foi condenada a mais um ano de prisão por ter escrito uma carta denunciando os maus-tratos e abusos sexuais contra mulheres presas nos protestos após a morte de Mahsa Amini. Em setembro de 2022, Amini, 22, morreu sob custódia, após ser presa por ter violado as leis islâmicas que exigem o uso de hijab.
Mohammadi não tem contato com seus filhos gêmeos adolescentes, Ali e Kiana, 17, há dois anos. Nenhum telefonema, nenhuma carta. Nos últimos sete meses, não pôde nem sequer falar com seus advogados.
Em entrevista por e-mail à Folha, o marido de Mohammadi, o ativista Taghi Rahmani, relatou o impacto da prisão da ativista. Ele vive exilado em Paris com os dois filhos.
“A família paga um preço alto pela ausência dela. Ela está separada dos filhos há mais de dez anos, o impacto na vida deles é profundo. Apesar de eles entenderem, o vazio deixado pela ausência dela é inegável e demonstra a crueldade de um sistema que tenta calar qualquer dissidência”, diz Rahmani.
Foram os gêmeos Ali e Kiana que leram o discurso de agradecimento da mãe na cerimônia de entrega do prêmio Nobel da Paz, em dezembro do ano passado. O discurso foi contrabandeado de dentro da prisão.
Também foi uma missão de alto risco obter e publicar as entrevistas que constam no livro. Segundo Rahmani, “apesar do enorme aparato de segurança, o livro conseguiu chegar até o público e se tornou uma voz poderosa contra o confinamento solitário”.
“A cela tinha apenas três passos de largura. Quando permanecia muito tempo sentada, sentia as paredes se fechando ao meu redor”, conta Mohammadi no livro. Ela relembra que à noite, antes de dormir, praticava as lições que havia aprendido nas aulas de canto. “Não ouvia a voz de ninguém havia muito tempo, por isso, quando levantava um pouco a minha voz, ficava surpresa.” E acrescenta: “Eu desejava ter um ataque cardíaco só para sair dali.”
Outra das prisioneiras, Nigara Afsharzadeh, conta que, quando seu almoço era levado para a cela, ela cortava pedacinhos de arroz e os jogava no chão, “a fim de atrair formigas ou qualquer outra coisa, para me entreter”. “Eu queria um ser vivo na cela comigo”, relembra no livro. “Fiquei muito feliz quando uma mosca apareceu. Tive o cuidado de não a deixar sair quando a porta estava aberta. Eu a seguia e conversava com ela.”
A socióloga Zahra Zehtabchi foi mantida em confinamento solitário durante 14 meses. Ela só tinha o Alcorão, que leu 14 vezes. Achou uma caneta escondida em sua coberta e escrevia na parede da cela.
Por ter se convertido ao cristianismo, Fatemeh Mohammadi foi condenada a seis meses de prisão sob a acusação de “atividade cristã e de agir contra a segurança nacional por meio de propaganda contra o Estado”. Além disso, foi proibida de frequentar a faculdade de Tradução e Inglês em Teerã.
Ficou em solitária em uma cela tão pequena que nem dava para andar. Ela tinha depressão, e o silêncio absoluto e a falta de mobilidade pioraram sua condição. Os carcereiros não deixavam que ela tivesse acesso a sua medicação.
“Estas mulheres deixam para a posteridade a maneira como o Estado iraniano tenta separar a alma do corpo de cada prisioneira por meio da tortura branca”, diz a historiadora Shannon Woodcock na introdução do livro.
Rahmani, marido de Mohammadi, afirma estar preocupado com a saúde da esposa. “Ela tem 52 anos, passou por uma cirurgia cardíaca há um ano, tem arritmia e precisa de cuidados médicos que as autoridades se recusam a dar.”
TORTURA BRANCA: ENTREVISTAS COM PRISIONEIRAS IRANIANAS
– Preço R$ 74,90 (208 págs.)
– Autoria Narges Mohammadi
– Editora Instante
– Tradução Gisele Eberspächer
PATRÍCIA CAMPOS MELLO / Folhapress