Nos 30 anos da posse de Mandela, conciliação dá lugar a populismo na África do Sul

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – Há 30 anos, Nelson Mandela tomava posse como presidente da África do Sul prometendo “trabalho, pão, água e sal para todos”.

“O tempo de curar as feridas e criar pontes sobre o abismo que nos divide chegou”, disse, em 10 de maio de 1994, num discurso nos jardins do Union Building, em Pretória, de onde presidentes brancos governaram o país por décadas.

O lirismo daquele momento atualmente se perdeu numa África do Sul que convive com altos índices de desemprego, criminalidade e corrupção.

No entanto, a gestão de Mandela à frente do país, exercida até 1999, segue presente na vida política sul-africana. Seus efeitos são especialmente visíveis na campanha para a eleição presidencial marcada para 29 de maio, vista como a mais importante desde o fim do apartheid.

Três décadas depois do histórico discurso de posse, a conciliação pregada por Mandela, paradoxalmente, turbinou no país um discurso populista que ganha ressonância na sociedade, mas com características singulares.

Enquanto na maior parte do mundo políticos de centro se preocupam com o crescimento destrutivo da extrema direita, na África do Sul é o populismo de esquerda que pode desestabilizar o país.

Duas forças políticas formadas a partir de dissidências do Congresso Nacional Africano (CNA), partido de Mandela, que se mantém até hoje no poder, duelam pelo flanco esquerdo do espectro político.

Ambas partem de um diagnóstico de que a pacificação pregada no final do apartheid foi um erro e que o CNA se absteve de fazer mudanças radicais e necessárias na sociedade.

Uniformizados de boina vermelha, um antigo símbolo dos revolucionários africanos, os Combatentes pela Liberdade Econômica (EFF, na sigla em inglês) prometem nacionalizar setores econômicos e combater os privilégios da minoria branca.

Já o recém-surgido partido MK, que tem o ex-presidente Jacob Zuma à frente, ressuscita o nome de um braço armado do movimento antiapartheid, o Lança da Nação (ironicamente, chefiado pelo próprio Mandela nos anos 1960). Sua receita é baseada no nacionalismo econômico e cultural e na redistribuição acelerada de propriedades para negros pobres.

Pesquisas mostram que essas duas forças de esquerda combinadas poderão atrair de 20% a 25% do eleitorado. Teriam, assim, papel relevante num cenário, hoje provável, em que o partido do governo fique abaixo de 50% pela primeira vez, necessitando de parceiros para seguir no poder.

De maneira perturbadora, embora não alcem esse tema a uma prioridade, os esquerdistas também fazem muxoxos contra a imigração ilegal de trabalhadores africanos, uma bandeira normalmente associada à direita.

A ameaça já foi percebida pelo CNA, que na origem é também um partido de esquerda, mas atualmente se assemelha mais a uma legenda do centrão brasileiro. A sigla governista vem ajustando seu discurso e assumindo bandeiras econômicas mais estatizantes, embora sem a mesma estridência dos rivais.

A promessa é investir o restrito orçamento público em obras e linhas de crédito para criar empregos. No tema da imigração, “resolver o problema dos ilegais”, o que quer que isso signifique na prática.

Na outra ponta do debate, é também uma ação iniciada e defendida por Mandela que mobiliza eleitores mais à direita, que apoiam o partido Aliança Democrática, hoje o segundo maior do país.

Com ideologia liberal inspirada na centro-direita europeia, a legenda se insurge contra o amplo programa de ações afirmativas batizado de Fortalecimento Econômico Negro (BEE, na sigla em inglês), que tem como objetivo aumentar a participação de negros no comando de empresas, inclusive privadas.

Em quase 30 anos de existência, o programa é creditado pela criação de uma robusta classe média negra, mas também deu margem a acusações de corrupção e favorecimento político de pessoas conectadas ao governo. O fato de terem surgido milionários ligados ao CNA (inclusive o atual presidente, Cyril Ramaphosa) apenas inflamou as críticas.

Ao tomar posse, Mandela buscou unir numa mesma lógica a inclusão econômica e a busca pela paz social, num momento em que uma guerra civil no país era uma ameaça ainda muito presente.

“Nosso plano é criar empregos, promover paz e reconciliação e garantir a liberdade para todos os sul-africanos”, pregou o estadista, em outro discurso naquele mesmo 10 de maio de 1994, desta vez ao Parlamento, sediado na Cidade do Cabo.

Para uma parcela significativa dos sul-africanos, no entanto, a frase virou um paradoxo, e a liberdade econômica há muito não é vista como uma decorrência natural da harmonia social.

FÁBIO ZANINI / Folhapress

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