FOLHAPRESS – Radu Jude gosta de provocar. A certa altura do filme “Não Espere Muito do Fim do Mundo”, o diretor romeno coloca o cineasta Uwe Boll para recordar quando enfrentou seus críticos no boxe. O caso é real: Boll, famoso por longas que são considerados ruins, desafiou aqueles que detonavam seu trabalho para o ringue em 2006.
Solta assim, a cena é uma afronta divertidíssima: Boll reconta o evento com orgulho e, em seguida, grava um vídeo xingando todo mundo. Mas dentro do filme de Jude, que passa na Mostra de Cinema de São Paulo, ela está mais para uma celebração. Para o romeno, eis alguém que bateu de frente com aquilo que o irrita diariamente.
Esse sentimento de revolta faz parte da produção do diretor e está por todo lado neste novo trabalho. O que é engraçado, se considerar que Jude vive bom momento nos festivais, onde goza de prestígio e atenção depois de levar o Urso de Ouro em 2021 por “Má Sorte no Sexo ou Pornô Acidental”.
“Não Espere Muito do Fim do Mundo” é o primeiro longa do cineasta desde esse triunfo e, como tal, dá sinais de sua validação como autor pelos círculos mais prestigiados. O roteiro recita gente como o escritor Don DeLillo e o filósofo Slavoj Zizek. A participação de Boll e da atriz Nina Hoss uma das musas de Christian Petzold, por sua vez, denotam a atenção internacional sobre o projeto.
Mas Jude continua o mesmo, até na produção simples os créditos são feitos com cartelas de papelão, por exemplo. De excesso mesmo, só a duração de duas horas e meia do filme. Ele faz outra comédia ácida sobre a Romênia, de novo a partir de uma montagem cortante que explora a linguagem do cinema.
“Não Espere Muito do Fim do Mundo” é dividido em duas seções de durações desiguais. A primeira, que toma duas horas, mostra a rotina de Angela, papel de Ilinca Manolache, que passa os dias trabalhando dentro do seu carro. Nas viagens por Bucareste, ela entrevista pessoas que sofreram acidentes gravíssimos nas fábricas de uma multinacional.
No vai e vem de Angela, Jude justapõe as imagens em preto e branco com as coloridas de uma xará de 1981. Eles são pedaços do filme romeno “Angela Merge Mai Departe”, de Lucian Bratu, sobre uma Angela taxista que busca um amor para chamar de seu.
A oposição entre as duas Angelas já revela a acidez da obra. A dos anos 1980 é uma pessoa dócil, até elegante sobre as dificuldades diárias que envolvem motoristas mal-educados e passageiros traumatizados. A dos dias de hoje, por sua vez, devolve a grosseria sem pestanejar.
Parte da raiva dessa Angela pode ser entendida nas imagens claustrofóbicas da primeira parte do longa. Quando ela dirige, o diretor sempre filma Manolache pelo banco lateral ao do motorista. Nesses momentos, vemos pela janela apenas outros veículos, e as poucas pessoas que surgem são agressivas.
A sensação que fica é mesmo de apocalipse, como antecipa o título. Se os cortes para o filme de 1981 mostram pessoas e alguma humanidade, o mundo de agora parece dominado pelo aço impessoal.
O paralelo surpreende para os padrões de Jude, que nunca observou o passado da Romênia com nostalgia. Sua carreira se destaca pelo olhar duro de uma história renegada pelo país. Desde “Aferim!”, de 2015 e sobre o passado escravista do país, a “Eu Não Me Importo se Entrarmos para a História como Bárbaros”, de 2018, que cutucava a aliança histórica do ditador Ion Antonescu com Hitler.
Dessa vez, a Romênia dos anos 1980 surge como um lembrete melancólico de uma nação mais humana.
A crítica ao avanço neoliberal sobre o país se impõe nos detalhes. Em certo momento, vemos Angela bater cabeça com um hotel que deseja realocar o túmulo de sua avó. O motivo? O cemitério onde ela está, vizinho ao prédio, afasta os hóspedes ela seria uma visão deprimente, segundo o dono do empreendimento.
Jude, sempre mordaz, insere no filme dezenas de imagens de túmulos espalhados pelo país pouco depois desse encontro.
Esse é o tipo de reflexão cáustica sobre um mundo desumano que desenha a história. Lá pelas tantas, depois de tantos depoimentos tristes, descobrimos que esse trabalho de Angela tem nada de nobre.
Ela faz um freela para uma produtora local que foi contratada pela tal multinacional para criar um filme de segurança nas fábricas. Aquelas vítimas, sem elas saberem, são candidatos a personagens.
As gravações desse projeto viram a segunda parte de “Não Espere Muito do Fim do Mundo”. Em uma único plano, a câmera de Jude que se confunde com a da produtora acompanha a filmagem oficial de um dos relatos. Ele termina todo desvirtuado para atender a corporação, sobrando nada na denúncia feita pelo entrevistado até sua voz é apagada.
É neste momento que se entende o porquê de Jude ver tanto valor em Uwe Boll: o alemão pelo menos pode socar seus algozes, enquanto os romenos estão fadados a ficarem na lama.
NÃO ESPERE MUITO DO FIM DO MUNDO
Quando 21/10, às 18h, no Reserva Cultural; 23/10, às 15h10, no Espaço Itaú de Cinema Augusta; 24/10, às 15h, na Cinemateca Brasileira; 28/10, às 13h30, no Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca; e 30/10, às 20h30, no Espaço Itaú de Cinema Frei Caneca
Classificação 16 anos
Elenco Ilinca Manolache, Uwe Boll e Nina Hoss
Produção Romênia, Luxemburgo, França e Croácia, 2023
Direção Radu Jude
PEDRO STRAZZA / Folhapress