VENEZA, ITÁLIA (FOLHAPRESS) – Quando o Festival de Veneza divulgou os concorrentes ao Leão de Ouro deste ano, a presença de um novo filme do japonês Ryusuke Hamaguchi na lista foi uma surpresa e tanto. Depois do sucesso duplo em 2021, com “Roda do Destino”, que levou o grande prêmio do júri em Berlim, e “Drive My Car”, ganhador do Oscar de filme internacional, seu novo projeto era praticamente desconhecido -não se sabia sequer se ele estava preparando um longa por agora.
Pois estava, sim, e o tal filme, “Evil Does Not Exist”, foi acolhido pela imprensa no Lido com aplausos estranhos, que demonstravam certo entusiasmo, mas também uma falta de saber como reagir diante do que acabava de ser exibido na tela. Afinal, o finalzinho do longa traz uma situação inusitada e um bocado imprecisa. Visivelmente deu um nó na cabeça dos espectadores, que não souberam responder ao filme de imediato.
A história se passa em um vilarejo japonês, perto de uma floresta. A câmera de Hamaguchi inicialmente se debruça sobre a relação entre um homem viúvo e sua filha pequena -ele costuma se esquecer de ir buscar a garota no colégio, e ela aproveita para ir para casa sozinha, explorando o mato no caminho, compreendendo melhor a região onde mora.
Ali, um grande conglomerado turístico adquire terras e decide construir um novo tipo de negócio, chamado “glamping” -neologismo que condensa os termos glamour e camping, ou seja: acampamentos gourmetizados, que dão a impressão aos turistas de estarem hospedados com simplicidade no meio do mato, sendo que, na verdade, têm a disposição uma forte infraestrutura e luxo, em uma autoilusão de um turismo rústico.
Para não ficar mal com a população dos arredores, a empresa envia dois funcionários terceirizados para fazerem uma palestra aos habitantes locais, que não se deixam ser enganados. Fazem uma série de questionamentos que mostram o quanto o projeto é incipiente e sem preocupação com a natureza e os moradores do vilarejo, deixando os dois palestrantes bastante envergonhados. A ponto de eles próprios se voltarem contra o conglomerado que os contratou e darem razão aos moradores de lá.
O filme começa meio emperrado, com Hamaguchi prolongando as cenas do cotidiano dos habitantes um pouco além do que deveria -o público já entendeu que o estilo de vida ali é vagaroso, até entediante, mas o cineasta persiste em prosseguir na duração de cenas em que “nada” acontece.
Mas depois da palestra com os porta-vozes da empresa, o filme ganha musculatura, e a história se torna ainda mais fascinante no momento em que os dois funcionários terceirizados têm uma conversa no carro, após a embaraçosa reunião com os locais. Vemos ali duas pessoas que, anteriormente, pareciam criaturas insensíveis e predatórias, mas que repentinamente se mostram como também vítimas de uma sociedade comandada por grandes empresários, como o dono do empreendimento turístico.
O filme, então, exibe aquele tipo de atração que vários outros trechos de conversas em carros na obra de Hamaguchi costumam apresentar -basta lembrar as duas amigas no banco traseiro, no primeiro episódio de “Roda do Destino”, ou alguns instantes de papo entre o diretor teatral e sua motorista, em “Drive My Car”.
Mas eis que o filme chega ao trecho final, em que os moradores recebem com frieza e hostilidade os dois palestrantes, que estão ali de volta tentando defendê-los e mesmo aprender coisas com eles -algo que sua vida urbana apressada não lhes permite ter na cidade grande. Hamaguchi de repente abandona a sinceridade e a crença na intuição que vinha mostrando até ali, quando deixava as cenas acontecerem por si mesmas, e injeta cálculo e busca por resultados. Investe em um final provavelmente “simbólico”, mas que evidencia sobretudo o trabalho cerebral por trás da cena -é um fim de filme tão indecifrável quanto anticlimático, que infelizmente compromete o todo. Hamaguchi e o público mereciam um desfecho melhor.
A vida em um local com ares de vilarejo também é o foco da única produção brasileira exibida em uma das principais mostras em Veneza neste ano. Na paralela Orizzonti, “Sem Coração”, dirigido por Nara Normande e Tião, apresenta a história um grupo de adolescentes que mora em Guaxuma, bairro de Maceió com cara de cidade de interior, na década de 1990. A adolescente de classe média Tamara está prestes a se mudar para Brasília para prosseguir seus estudos, e é na capital federal que ela vai, pela primeira vez, enfrentar o mundo sozinha. Ela ainda está em um tempo de descobertas, sobretudo sexuais -uma jovem moradora da região, Duda, conhecida como “sem coração” por conta de uma cirurgia cardíaca pela qual precisou passar, desperta nela desejos que a farão se conhecer melhor.
O filme tem um aspecto solar, com uma fotografia quente que confere às imagens uma forte carga sexual. Normande e Tião fazem um belo filme, ainda que nem sempre controlem o ritmo da narrativa com muita eficiência. Mas o elenco juvenil é extraordinário -Maya de Vicq, que interpreta Tamara, e Eduarda Samara, que dá vida a Duda, estão perfeitas em seus papeis. E há uma cena especialmente lírica, na praia, em que um rapaz que sofre homofobia recebe a solidariedade dos demais amigos do grupo, que lhe dão um abraço coletivo. Nem que por apenas essa cena, o filme já merecia ser conhecido internacionalmente.
BRUNO GHETTI / Folhapress