Número de pessoas negras em cargos de chefia cresce, mas barreiras persistem

SÃO PAULO, SP (FOLHAPRESS) – O número de pessoas negras em cargos de chefia cresceu no Brasil. Os dados brutos do mercado de trabalho formal, no entanto, escondem que as barreiras para a ascensão profissional são persistentes.

O cenário é traçado por levantamento inédito da Folha de S.Paulo, feito com base na Rais (Relação Anual de Informações Sociais). A análise dos dados que abrangem 15 anos mostra mudanças e desafios.

Os vínculos trabalhistas formais de pessoas pretas e pardas saltaram de 2006 para 2021 -últimos dados disponíveis. Passaram de 32,21% para 46,40%, alta de 14,19 pontos percentuais.

Como consequência, a participação de pessoas negras em posições de liderança também cresceu, de 23,65% para 36,10% no mesmo período. A expansão é de 12,45 pontos percentuais.

No levantamento, foram considerados cargos de chefia aqueles com os termos “diretor”, “chefe”, “supervisor”, “gerente”, “coordenador” e “dirigente”, tanto no setor privado como no público.

Especialistas ouvidos pela Folha de S.Paulo afirmam que fenômenos sociais recentes ajudam a explicar esse contexto econômico de maior participação de pessoas negras no mercado de trabalho formal.

Entre eles estão as cotas nas universidades, o crescimento da autodeclaração de pretos e pardos e o avanço das pautas étnico-raciais na sociedade e nas empresas.

“Ao formar mais gente via cotas ou via democratização do ensino superior, o que ocorreu nos últimos anos, aumenta a proporção da população mais escolarizada, e isso tem reflexo no mercado de trabalho formal”, diz Michael França, doutor em teoria econômica pela USP (Universidade de São Paulo) e colunista da Folha.

Como mostram os dados do Censo de 2022 divulgados nesta sexta-feira (22), os autodeclarados pardos ultrapassaram os brancos e formam hoje o maior grupo étnico-racial no Brasil, com 45,3% de todo o país.

Os dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística) revelam também que mais pessoas se autodeclaram pretas (10,2%). Agora, 43,5% se dizem brancas.

“Isso foi reflexo tanto de uma mudança na concepção das pessoas em relação à raça quanto de uma questão demográfica vinda da fecundidade. Com isso, tem esse aumento da proporção da população negra que também vai se refletir no mercado de trabalho formal”, explica França, que é coordenador do Núcleo de Estudos Raciais do Insper e organizador e um dos autores do livro “Números da Discriminação Racial”.

A presença de pessoas negras nas corporações acelera ainda transformações, afirma Daniele Mattos, cofundadora e sócia da Indique Uma Preta. A consultoria conecta a comunidade negra ao mercado de trabalho.

“Hoje em dia, elas [pessoas pretas e pardas] entram [nas empresas] já demandando algum tipo de mudança. A gente vê, nas entrevistas, pessoas negras perguntando se a empresa tem de fato políticas de diversidade e inclusão como os fatores decisivos para trabalhar ali”, afirma Mattos.

A especialista acrescenta também o interesse das corporações em aumentar o percentual de mulheres e homens negros nos seus quadros. Aqui entra uma questão de mercado: resultados.

“Empresas com diversidade étnica são mais propensas a ter lucro do que as que têm apenas diversidade de gênero”, diz Mattos.

Apesar do crescimento do número de mulheres e homens pretos e pardos no mercado de trabalho formal e em cargos de chefia, a chance de um profissional negro ser promovido é menor do que a de todos os outros grupos.

Essa conclusão é tirada com base na métrica chamada odds ratio, a razão de possibilidades. Ela calcula a razão entre a chance de um evento ocorrer em um grupo e a chance de ocorrer em outro.

Tecnicamente, a probabilidade de um trabalhador negro ser chefe é dada por total de chefes negros sobre o total de trabalhadores negros. A metodologia vale para todos os outros grupos.

Essa fórmula mostra que, em 2006, primeiro ano em que critérios de raça e cor passaram a ser contabilizados nos vínculos trabalhistas na Rais, pessoas negras tinham 36,5% menos chance de ocupar uma chefia do que funcionários de outros grupos. Em 2021, o índice aumentou sutilmente: 37% menos chance do que as demais.

No caso das pessoas brancas, os números mostram realidade inversa. Há 15 anos, elas representavam 66,68% dos formais, e hoje são 52,59%. Em chefia, ocupavam 74,9% das vagas em 2006 e 62,70% em 2021.

Uma trabalhadora ou trabalhador branco tinha 53% mais chance que os demais de ser chefe em 2006. Apesar da queda na participação no mercado, essa chance cresceu para 56% em 2021.

As comparações foram feitas com base em microdados da Rais e considera vínculos de trabalho ativos no final de cada ano (31 de dezembro), com mais de 10 horas semanais, e a partir de um salário mínimo.

Os especialistas ouvidos pela Folha apontam o netwoking -rede de contatos-, a segregação em múltiplas facetas e o discurso meramente meritocrático como fatores de entrave para uma promoção.

“O mercado fala bastante de meritocracia, mas, ironicamente, trabalhando a diversidade nas empresas e ouvindo bastante sobre carreira, percebo que na maior parte das vezes o que falta para o avanço de uma pessoa dentro da empresa são as relações que ela cultiva”, afirma Mattos.

Ela diz que essas relações perpetuam vieses inconscientes racistas -conjunto de preconceitos, estereótipos e pensamentos tendenciosos sobre determinados grupos sociais- presentes na sociedade.

“Um exemplo é a ‘juniorização’ do trabalho de pessoas negras seniores. Se o funcionário entrou por uma vaga afirmativa, tem o seu escopo de trabalho diminuído, é menos chamado para reuniões estratégicas e coisas do tipo”, afirma Mattos.

Esse processo é ainda intensificado quando os fatores de segregação se inter-relacionam, diz Edivaldo Constantino, doutor em economia pela USP e gerente da JOI Brasil (Iniciativa de Empregos e Oportunidades Brasil), do J-PAL LAC (centro de pesquisa que trabalha para reduzir a pobreza, assegurando que políticas públicas sejam informadas por evidências científicas).

“Quando você pensa na indicação de uma pessoa para determinado tipo de cargo, você vai olhar para sua rede, seu networking. As pessoas brancas, geralmente, tendem a ter ao seu redor um conjunto de pessoas brancas [em posições de liderança]. Esse pode ser um fator que esteja por trás dessa probabilidade [menor] de os negros alcançarem posições de liderança em empresas”, diz Constantino.

Até o espaço e a distribuição geográfica das pessoas pelas cidades impactam essa realidade.

“Uma questão de segregação residencial, por exemplo: a maioria dos negros vive em áreas distantes dos centros de trabalho, o que dificulta o acesso à população negra a postos de trabalho que remuneram mais. Por isso, menor a chance de eles alcançarem esses tipos de cargo”, afirma Constantino.

No mundo corporativo, embora o diagnóstico revele desafios, há avanços. Ana Carla Lopes, 36, líder na área de comunicação e reputação do grupo Boticário aponta alguns deles.

“Ocupo postos de liderança há oito anos. De lá para cá, tenho percebido uma mudança de postura nas empresas e na sociedade, no sentido de buscar conhecimento em relação à posição que profissionais negros ocupam no mercado de trabalho. Eu amadureci meu olhar para a pauta racial, e as organizações também”, afirma.

De acordo com ela, ao chegar ao Boticário, já como líder, encontrou o que procurava: “Ter pessoas iguais a mim ali [no comando] é como um farol. São exemplos possíveis de seguir.”

Formada em comunicação social em 2008, ela conquistou o primeiro posto de liderança em 2015, em uma agência de comunicação. Depois, passou por vagas de gerência na 99 e Nubank. Em 2021, assumiu o cargo no Boticário.

Não é uma posição fácil. Para Lopes, há uma responsabilidade adicional que não consta na descrição do cargo: a de ser um exemplo. “Eles precisam de boas referências, e busco ser para eles o que eu não tive enquanto crescia.”

Redação / Folhapress

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