LOS ANGELES, EUA (FOLHAPRESS) – “O Aprendiz” teve seu lançamento mundial na competição pela Palma de Ouro, no Festival de Cannes, em maio. O filme teve uma recepção calorosa, que se refletiu nos aplausos do público. A crítica elogiou a produção, e o burburinho sobre indicações ao Oscar ganhou força. A história da relação entre o jovem empresário Donald Trump, interpretado por Sebastian Stan, e o controverso advogado Roy Cohn, vivido por Jeremy Strong, estava prestes a decolar para o sucesso. Até que nada aconteceu.
Em vez de um leilão acirrado pelos direitos de distribuição nos Estados Unidos em pleno ano de eleições presidenciais com Trump na disputa, o filme foi rejeitado por todos os estúdios e serviços de streaming. Não demorou muito para o motivo aparecer. A equipe do republicano enviou uma notificação extrajudicial aos produtores, acusando-os de “interferirem diretamente na eleição americana” e ameaçando processar qualquer empresa que comprasse “O Aprendiz” para levá-lo às salas de cinema do país.
“Ele [Trump] é uma pessoa muito litigiosa. Processa todo mundo há 40 anos. O que fizeram em Cannes foi arruinar nossas chances de distribuição”, diz à Folha o diretor iraniano-dinamarquês Ali Abbasi, de “Border” e “Holy Spider”. “Assustaram todo mundo. Ninguém quis se envolver com o filme.”
A produtora Kinematics, responsável por quase metade dos US$ 16 milhões do orçamento de “O Aprendiz”, pediu várias mudanças no corte final, principalmente relacionadas à cena em que Trump estupra sua primeira mulher, Ivana, interpretada pela atriz Maria Bakalova, de “Borat: Fita de Cinema Seguinte”. Os cineastas negaram os pedidos e se viram boicotados pelo próprio investidor, que ameaçou não permitir a distribuição do longa.
Mas por que um investidor impediria o lançamento do projeto que garantiria seu esperado retorno financeiro? Não é uma resposta difícil. A Kinematics é controlada por Mark H. Rapaport, que é casado com a filha de Daniel Snyder, bilionário dono do time Washington Commanders e um dos principais patrocinadores das campanhas de Trump.
“Ele [Snyder] viu o corte do filme e odiou”, confirma Abbasi, que começou a trabalhar no projeto em 2018, depois que diretores como Paul Thomas Anderson e Clint Eastwood recusaram a oferta. “Na última rodada de financiamento, Trump estava num péssimo momento, tinha acabado de perder a reeleição e todos riam dele. Era um fracassado, um palhaço. Ninguém imaginava que teria a oportunidade de concorrer de novo depois do que aconteceu em 6 de janeiro, na invasão do Capitólio. De repente, ele se tornou um perigo para os negócios.”
Com as pesquisas indicando uma eleição sem favoritos em novembro, “O Aprendiz” ficou em um limbo. Mesmo com o mercado internacional garantido –caso do Brasil, onde o longa estreia nesta quinta-feira (17)-, a produção precisava garantir os cinemas americanos para ter algum lucro. Em setembro, os produtores decidiram apelar para a plataforma de financiamento coletivo Kickstarter, para arrecadar US$ 100 mil e fazer uma distribuição limitada. O objetivo foi superado em menos de 24 horas.
Logo depois, Tom Ortenberg, que ajudou a lançar filmes politizados como “Fahrenheit 11 de Setembro” e “Spotlight”, adquiriu os direitos de distribuição num acordo que levou meses de negociações e adiantamentos que só vai gerar lucro caso o longa seja bem-sucedido nas bilheterias. E Trump ainda pode cumprir a ameaça de processar todos.
“Temos evidências para tudo que mostramos no filme, mas isso pode não ser o suficiente”, diz o diretor. “Você pode ganhar um caso e perder tudo. Trump comprou seu caminho pelo sistema legal. Alguém pode jogar milhões de dólares numa firma de advocacia e nos ferrar.”
Ironicamente, parte de “O Aprendiz” humaniza Trump, ao mostrar o início da trajetória do político na Nova York da década de 1970, então um jovem e deslocado empresário disposto a passar por cima das regras para ser bem-sucedido.
“O objetivo era humanizar os personagens, porque precisamos de uma dramaturgia. Mas tem de ter cuidado com o julgamento da história, porque você não pode fez um filme sobre Hitler em 1928 mostrando só que ele era um cara peculiar”, diz Abbasi, aos vo tantes das premiações de Hollywood. “Ser justo é mostrar problemas e falhas, mas também sua inteligência.”
“O Aprendiz” se equilibra ao mostrar que Trump fez lipoaspiração e cirurgia para impedir a calvície, algo que ele não admite. O filme ainda mostra o ex-presidente tomando anfetaminas como se fossem pastilhas, negando ajuda ao irmão alcoólatra e violentando Ivana sexualmente, algo que ela admitiu em depoimento, mas depois voltou atrás.
“Para mim, é uma cena como qualquer outra. Sei que acham que há uma controvérsia, mas não tem nada disso. Ela depôs sob juramento que aconteceu, depois falou que não queria dizer ‘estupro’ no sentido criminal da palavra, o que me parece claramente que foi pressão dos advogados dele”, diz Abbasi.
O longa não é uma sátira, mas a origem de um vilão complexo e ambicioso que mergulha no lado sombrio da força ao encontrar o mentor perfeito em Cohn, um advogado inescrupuloso, bruto e impiedoso que põe Trump embaixo das asas.
Segundo o roteiro, assinado por Gabriel Sherman, que cobriu intensamente a carreira política de Trump, foi Cohn que ensinou três regras que o político usa até hoje: ataque, ataque, ataque; nunca admita nada, negue tudo”; não importa o que acontecer, o que falem sobre você ou o quão derrotado estiver, clame a vitória e nunca admita a derrota.
“É um filme sobre essa transformação”, diz o diretor. Tanto que o ator Sebastian Stan fez questão de esconder os nomes dos personagens ao ler o roteiro, para não entrar no projeto com um olhar já tendencioso.
Abbasi, por sua vez, não tem ligação política nos Estados Unidos, por causa de suas origens. “É importante que o público experimente a humanidade que Trump perdeu ao longo do caminho. Se começasse o filme já como um babaca, não teria nada a perder. Desta forma, é mais doloroso”, afirma o diretor, que, mesmo assim, sabe que sofrerá novos ataques com a estreia nos Estados Unidos.
“Trump não é um político normal, mas líder de um culto”, conta o cineasta, que pensou em escalar uma atriz para o papel do ex-presidente, para ressaltar seu desconforto quando mais jovem. “É um culto que chegou ao ponto de que, se não venerar Trump, você está criticando-o. Qualquer crítica vira uma blasfêmia. Eu, no lugar de Trump, estaria feliz com o filme, já que tem um ator bonitão no seu papel.”
Apesar de ter lidado com o governo iraniano em “Holy Spider”, Abbasi diz não saber “o que vai acontecer” com “O Aprendiz”. “Deveria pedir proteção? Ele está ficando com uma retórica cada vez mais violenta, além disso é um país onde as pessoas vão para o cinema ver ‘Coringa’ e atirar em outras pessoas”, diz ele, que adoraria ver o longa ao lado de Trump ou em um reduto eleitoral republicano no estilo “Borat 2”. “Adoraria fazer uma sessão nesses lugares, mas se não conseguem nem proteger o presidente, imaginem a mim. Sacha Baron Cohen é polêmico, mas não tinha 80 milhões de inimigos.”
RODRIGO SALEM / Folhapress